sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Quem define os sonhos?

(Briga pelo telefone no domingo à tarde)


Peguei um ônibus e deixei São Paulo correndo. Pensei até em fazer um sorteio dentro da rodoviária e a sorte me trazer alguma cidade como destino. Mas não era a hora de arriscar tanto. Precisava mesmo descansar e sumir com todos os sintomas que a cidade deixou grudado. Tudo me incomodava, até barulho de chinelo arrastando pelo chão. A intenção era trocar o apito de alarmes de automóveis por pássaros e ondas batendo nas pedras. Largar as coisas assim, de uma hora para a outra, não é difícil para mim. Confio no meu tempo livre e não nas horas trabalhadas; não acredito no lucro.
A parada final foi uma vila de pescadores perto de Parati. Nada de televisão, telefone e sapatos. Uma casinha de sapé me serviu de hospedagem. Fogão a lenha no lugar de frigobar, uma janela com vista para o mar no lugar de TV a cabo e um galo para me acordar no lugar do celular. Esses prazeres são indispensáveis. Eu não considero que seja um paraíso, algo inalcançável ou privilégio de poucos. Eu acredito mesmo no ócio criativo como ideal de vida intercalado com o trabalho sem idolatria, como diria o pensador italiano Domenico de Masi.
Num domingo, fiz uma pequena visita à Parati. Entrei num restaurante e, tomando um café expresso, assistia involuntariamente um telejornal. Apesar de ter acionado um filtro auditivo para não escutar os repórteres e apresentadores, reconheci André na tela. Ele não deu entrevistas, mas aparecia em alguns planos de câmera, sempre ao fundo. “Eles adotaram o estilo de vida ‘Freegan’ e negam o trabalho e o capitalismo” dizia o repórter. “Belos ideais” pensei sorrindo. A câmera mostrava jovens recolhendo restos de uma feira livre no ABC paulista. A narração do repórter era cheia de preconceito e ironia, sempre sinalizando que os jovens não queriam trabalhar e muito menos pagar por serviços como aluguel, transporte e outros serviços públicos. Mesmo quando alguém do grupo relatava as suas propostas, “apoiamos a generosidade, o interesse social, a liberdade, e a ajuda mútua”, o melhor comentário do repórter era: “O sonho desses jovens esbarra na realidade. Um ideal romântico como esse é possível ser concretizado?”. A reportagem também queria denotar que os jovens tiravam a oportunidade de pessoas com baixa renda de aproveitar o famoso fim de feira.
Fiquei muito contente pela escolha de André. Ele era um recente namorado da minha filha, Lorena. Desde que eu o conheço já era “vegan”, ou seja, não consome nenhum tipo de produto animal, nem ovos, nem leite e roupas de couro e similares. Ela é ovolactovegetariana há alguns anos e começou a introduzir receitas vegans na sua dieta.
Um orelhão na frente do restaurante me incentivou a ligar para Lorena. “Lorena, vi o André na TV!” gritei. Ela bufou forte e quase me xingou:
- Você viaja para fugir das coisas e vê TV? Eu não quero falar do André. Ele não sabe o que quer. Eu não como nada que tenha sacrifício animal, mas não sei se quero mudar o mundo agora.
Percebi que meu apreço pelo ideal “freegan” não era unanimidade naquela família. Minhas leituras na juventude, eventos na universidade, filosofia barata em botecos, juras de amor, entre outras coisas, eram um ensaio para chegar nesse estágio de liberdade. Negar o consumo desenfreado, adotar sistemas de autogestão inspirados nos anarquistas, se alimentar sem precisar de crueldade e do sangue dos animais, era tudo o que eu queria e não tive “colhões“ para encarar. Fugir de uma cidade para a outra e curtir era uma coisa, mas mudar radicalmente de posição era preciso coragem e determinação. E o jovem André tinha. Lorena não reconheceu isso e muito menos apreciou. Era uma espécie de egoísmo que tomava conta dela aos 19 anos de idade? O que essa sociedade embutiu na sua cabeça que eu não consegui imunizar? Telefonei novamente e brigamos mais uma vez
Era uma situação confusa. Eu, o pai, incentivando que ela viva num ideal ético que a maioria dos pais quer distância; eu, o pai, frustrado com as posições caretas e capitalistas da filha; eu, o pai, forçando a barra pelo telefone sem estar na pele dela; eu, o pai, admitindo a própria covardia de não aplicar as utopias das conversas de boteco.
André, com seus 20 anos, não tem a verdade superior. Nem eu. Talvez tenhamos um senso humanista exagerado e uma noção que “Os novos baianos” já cantaram: “o mundo é oval e a vida é uma” na música “Caia na estrada e perigas ver”. A pressa em ver o mundo mudar fez André útil e prático. Fará a sua parte mostrando essa “anarquia vegan”. Quanto a mim, essa pressa não me encorajou o suficiente. Só sirvo de alto falante, ou papagaio de pirata.
Na volta desse ensaio de rebeldia aqui perto da areia e do mar pedirei desculpa à Lorena. Quem sou eu para cobrar que ela seja aquilo que não consegui ser? Quero conhecer os sonhos de Lorena e que sejam com ou sem André.
De volta à vila, aproveito para pedir uma canção ao hippie que está ao meu lado com um violão. É do Caetano Veloso, mas ficou conhecida na voz de Gal Costa, chamada “Divino maravilhoso”. Digo para ele que me ajudará a refletir. Ele toca com algumas dificuldades na letra, mas eu e sua amiga o ajudamos: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte(...)tudo é perigoso, tudo é divino e maravilhoso”.

3 comentários:

Alexandre disse...

Caro Marcelo,
parabéns por sua participação no projeto orientado pela professora Ana. Tenho certeza de que as produções serão muito interessantes.

Como você começou agora vou esperar outras produções suas para fazer comentários mais específicos, mas seu texto é interessante por aproveitar uma reportagem e fazer um conto.

Vamos em frente!

Prof. Alexandre

Anónimo disse...

Olá, Marcelo, consegui chegar aqui.

Parabéns pelo texto e pela idéia que você desenvolve nele,criatividade é uma boa característica sua como escritor; seus textos não são as mesmices que encontramos por aí.
Você conseguiu abordar diferentes aspectos de nossa vida ( o tempo escasso, a necessidade de fugir por uns tempos, a relação pai e filha, os questionamentos juvenis, a lembrança do passado, enfim)a partir de um tema, até difícil, como o sugerido.
Acho apenas que, em aguns trechos, há um excesso de informação para um conto, como a referência explicativa ao Di Masi e à música de Caetano. Deixe algumas 'curiosidades' para o leitor.

Beijos

Anónimo disse...

Eu já tinha lido esse e não comentei.
Realmente um erro imperdoavel. Espero q esteja a tempo de me redimir.

Apesar de fazer biologia, oq geralmente deveria me dar simpatia aos vegans e afins, concordo com a Lorena.

Vc disse q não gosta muito desse texto. Mas saiba q como sempre está ótimo.

Bjos.