terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Livre arbítrio

(Visita de domingo)


Prestes a tomar alguma decisão me lembro do clichê, muito utilizado por publicidade e desenhos animados, do anjo e do diabo pendurados nos ombros, num debate de quais escolhas são corretas. Além disso, me escondo em alguma parte da casa e começo a falar sozinho. Na verdade falo com as criaturinhas. No ombro esquerdo, o diabinho sugere as coisas subversivas e do prazer sem limites e o anjinho na direita, tudo aquilo que é sensato e de acordo com os bons costumes. Entro na banheira cheia e fico sentado com os ombros fora da água. Quando uma das criaturinhas se invoca e usa artifícios muito baixos na sua argumentação eu deito mais na banheira e afogo o lado que está me irritando.

Mas ali no banco, em frente ao gerente da minha conta, eu não tinha nenhum lugar para ficar sozinho e falar alto comigo mesmo. As criaturinhas ficariam envergonhadas de aparecer em um local público. Disse ao engravatado que pensaria e traria uma resposta. O seu olhar foi impiedoso, pior que o de uma mãe irritada, para soltar uma frase indigesta: “você foi demitido e cada dia que protela para investir seu dinheiro, ele vale menos”.

Assim como o personagem de Nicholas Cage, no filme “Despedida em Las Vegas”, resolve beber até morrer depois de ser demitido, eu decidi gastar toda a minha indenização e os meus direitos trabalhistas até minguá-los e não trabalhar. O ombro esquerdo levou a partida. O diabinho não usou um argumento tão sofisticado, mas me fez refletir que a criatividade é o que move minha profissão. Portanto, resolvi me entregar aos prazeres. Sentir o cheiro do bairro em horários desconhecidos até então, deixar a brisa da madrugada bater no meu rosto, ver os dias amanhecerem, chegar tarde nos bares, filosofar no meio do dia com algum amigo e não ter hora para me entorpecer. Afoguei o gerente de banco pelo ombro direito.

Dois meses como “bon vivant” e não tive nenhuma crise de consciência. Nem lembrei que pudesse ser uma escolha atrevida, egoísta e que pudesse ser recriminada. Mas quando vi Renatinho de longe, parado numa esquina perto de casa, o germe da dúvida colocou a cabeça para fora.

Ele era dono de um típico boteco do centro, na rua Nestor Pestana. Azulejos coloridos, balcão de fórmica, cheio de bebuns e prostitutas, freqüentado por atores, jornalistas, músicos, atrizes e alcoólatras de escritórios da redondeza. Minha cara. Depois que o pai morreu, o bar durou pouco na mão dele e do irmão. Não o vejo há dez anos, um pouco menos. Uma ex-namorada nos afastou. Tânia chegava mais cedo que eu no bar e ele aproveitava o meu atraso para ser simpático e gentil. Depois de um tempo, para ser abusado e lascivo o suficiente e levá-la ao fundo do bar. Sabe-se lá quanto tempo e quantas escapadas foram necessárias até decidirem ficar juntos.

Ali, parado na esquina, os seus amigos o chamavam de Renato, sem o diminutivo. Dez da manhã. Eu chapado e ele vestido para o futebol. Mas por que perto da minha casa? São Paulo é tão grande. O sol fazia cócegas no meu pensamento. Não conseguiria me controlar e ia rir sem parar quando estivesse na frente dele. Ia ser desastroso. Ainda escutava as músicas da festa que acabara de sair. Não queria um papo nostálgico para afastá-las, aliás, eu não estava em condições de conversar.

Tentando atravessar a rua, quase fui atropelado. O barulho da freada chamou atenção dele e de todos, naturalmente. Não me abati pelo ocorrido e, como previsto, comecei a rir enquanto ele falava alto um monte de coisa de quem mata as saudades. Eu não ouvi nada. Parecia que eu ainda estava na festa com a música alta e seus lábios se mexiam produzindo um som bem menor. Nem sei como cheguei em casa depois desse rápido encontro.

À noite, acordei com o seu telefonema. Reclamou bem humorado que eu ainda estava em casa. Eu havia combinado de passar na casa deles hoje mesmo. Sim, eles ainda formavam um casal. Segundo ele, prometi até levar um sorvete e só não decidi o sabor porque não parava de rir.

- Você vem ou não vem? – perguntou.

Por um instante achei que precisaria papear sozinho com meus ombros. A primeira centelha de insegurança desde o desprezo ao gerente de banco. Era natural esse sentimento. Eu encontraria Tânia que me trocou por alguém que sempre escolheu por trabalhar. O que eu diria a eles quando me perguntassem sobre trabalho? “Veja bem. Um diabinho me soprou na banheira, pelo ouvido esquerdo, que devo aproveitar o máximo que a vida e o dinheiro têm a oferecer”. Digo pelo menos quando pretendo voltar a trabalhar? Que piada! Que se danem. Engulam com ou sem água minha resposta.

- Em quarenta e cinco minutos chego à sua casa. - respondi com firmeza.

Olhando aquele casal com seus três filhos, fiquei orgulhoso das minhas decisões. Toda insegurança foi embora quando entrei naquela casa. Tânia desfigurada pelo matrimônio, nem trabalhava mais. Só cuidava da casa e dos filhos. Renatinho só fazia alguma caridade a ela quando resolvia cozinhar macarrão com molho de caixinha ou a levava em algum shopping suburbano. As crianças davam tanto trabalho, que quase não conseguíamos conversar. O que era bom, de certa forma. Não queria profundidade.

Eu tive a impressão que o passado ficou tão distante para eles que talvez tenham esquecido que era comigo que Tânia namorava. Mas ela não deve ter esquecido que sua escolha à época era casar e ter filhos. A escolha de Renatinho nunca me interessou. Com as crianças chorando me despedi aliviado. “Até à próxima!”, menti.

Um táxi me deixou na porta da próxima farra, na Praça Roosevelt, muito perto da Rua Nestor Pestana.


4 comentários:

Anónimo disse...

Olá...não sei se deveria estar aqui. Rs* me sinto invadindo...mas eu vi a critica q vc fez ao texto no Jesus me chicoteia e de curiosa q sou vim dar uma olhada no seu blog.

Adorei esse seu texto. Simplesmente isso. ^_^. Gostei muito da sua forma de narrar. Juro q estou em duvida se isso é apenas um conto ou um relato de sua vida rs*

Beijinhos....

Deh

Zúnica disse...

Gostei muto do texto, Marcelo! Estou montando a crítica, te mando ela entre sexta e sábado.

Abraços!

Anónimo disse...

Marcelo! Assim como os outros, adorei seu texto.
Por ter estudado dois semestres com você não fiquei espantado com a qualidade de sua narrativa. Mais um texto de otima qualidade.
Como não escritor, apenas leio e aprecio. E depois irei ler as críticas feitas por outros leitores.

abraço.
Tiago Neves

Anónimo disse...

Muio bom, Marcelo, estou feliz em ver seu empenho na produção dos texto. Me surpreendo a cada novo texto, pois não há repetição, vc. tem uma habilidade no desenvolvimento do tema que eu nunca vi. Você começa em um ponto, desenvolvendo um aspecto e dali vai seguindo, progredindo, pulando de um ponto a outro - sem perder o fio narrativo - e chega a outro lado que jamais teríamos imaginado.Parabéns !!