segunda-feira, 7 de julho de 2008

Tarde laranja



Numa circunstância que nunca passaria pela minha cabeça, uma categoria de trabalhadores fez greve e afetou a rotina da minha profissão me impedindo de trabalhar. Fiquei livre. Terça feira bonita de sol, apesar do friozinho de outono. Comecei a organizar meu ócio com um check-list de afazeres de vagabundo. Não podia vagabundear sem uma pauta. Saí atrás de um apoio para fazer os apontamentos do que seria o meu dia e encontrei um botecão sujo e encardido, com balcão de fórmica laranja e azul, bem típico mesmo. Até o café que eu pedi insistia em ser encardido. Um aviso alertava que só serviam álcool depois das 10 da manhã. “Favor não insistir”. Quem pensaria nisso? Mas percebi que havia fregueses e mais fregueses sem consumir nada por ali. Impacientes, com barba por fazer e olhando o relógio.

Check list revisado, saí do bar e topei direto com uma feira livre. Perfeito. Peguei uma pêra para fazer charme. Curtindo música de desocupado nos fones de ouvidos, dei de cara com um sebo enorme. Sebo é um bom nome nesse caso. Nada estava limpo e tudo grudava. Vendia todo tipo de tranqueira, mas a minha preferência era pelos discos de vinil. Uma senhora, quase sem voz de tanto fumar, disse pigarreando que eles ficavam “escondidos” no porão. Eu mesmo acendi as luzes, eu mesmo limpei alguns discos lá embaixo. Eram muitos. Fiquei ali naquele local insalubre por duas horas. Pó, calor, umidade e escuridão para me acompanhar nas escolhas. Saí de lá com 9 discos, com dedos sujos, com espirros e tosses.

Fui embora a pé para casa. Gosto de andar, mas quando não tenho horário para chegar ao meu destino curto mais ainda. Observei as pessoas, aproveitei as ruas do meu bairro, percebi o comércio aberto, tudo isso num horário que dificilmente estaria livre para flanar desse jeito. Em alguns finais de tarde, consigo andar a pé. Em algumas madrugadas, também. Aliás, andar pela madrugada é delicioso. O ritmo boêmio me força a pegar o último metrô com certa regularidade, e ando pelo bairro por volta de uma hora da manhã. As ruas ficam lindas, principalmente no frio, porque ficam vazias e a iluminação consegue deixar o sereno nítido. O vento frio no rosto me deixa muito inspirado e renovado. Meus pensamentos vão longe, muito longe.

No mundo dos negócios, dia útil engloba o horário comercial de segunda a sexta. Eu transformei aquela terça ensolarada em dia fútil. Uso esta expressão sem nenhuma conotação pejorativa, e sim para provocar os workaholics com o significado leviano da palavra. Adoro o ócio criativo, adoro a culinária slow food, adoro bundar por aí. Se eu não estiver carregado com esse tipo de vibração, não consigo trabalhar direito.

Me esforcei para lembrar de todas as coisas que desejo fazer enquanto estou no ambiente de trabalho e não posso. E logo que cheguei do passeio da manhã pelo bairro, coloquei em prática as futilidades tão desejadas em outros dias de escravidão. Comecei com um banho demorado na banheira, lendo Baudelaire. Emendei com dois episódios do seriado “Sex and the city” (quer algo mais fútil?) e andei nu pela casa. Enchi o mp3 com músicas que combinariam com vagabundagem para poder sair de ouvidos e cabeça feitas

Quando veio a fome, lembrei de outro desejo reprimido a ser realizado. Almocei num restaurante indiano que adoro: Gopala Prasada. Comida lacto-vegetariana de primeira qualidade e, o melhor, condimentada. Fica numa travessa da Augusta. No almoço a refeição é só condimentada, mas à noite é hot hot hot. Adoro pimentas como já divulguei neste blog. Queria muito ser vizinho ou trabalhar perto deste restaurante.

Flanei pela Paulista inteira e desci a pé até à Liberdade, bairro que tenho freqüentado bastante. Estou enamorado pela Liberdade. A luz estava boa e fotografei muitos grafites de lá. Veja as fotos aqui no meu Flickr. Só consegui me concentrar para estas fotos com músicas do “Queens of stone age” muito altas no ouvido. O bairro é muito cheio para sair clicando sem atrapalhar alguém. Com um pouco de paciência e insistência, até que consegui.

O final de tarde veio laranja, como nessa foto. Eu já estava de volta ao meu bairro. A luz me deixou enternecido. Iluminou todas as ruas com esse tom. Parei num lugar alto para esse clique. Me esquentou e descongelou alguns temas e idéias de escrita. Cheguei em casa lotado de boas vibrações e com um filtro laranja nos olhos. Pronto para a noite. As noites, pelo menos para mim, nunca precisam de ocasiões ou circunstâncias especiais para se tornarem divertidas. Só de escurecer, de passar do azul claro para o azul escuro, o cheiro que essa mudança traz, já me deixa cheio de vida. Bebel Gilberto canta assim: “Até o anoitecer chegar, e nos envolver, passando do azul pro azul escuro. Até o rosa iluminar você, aqui distante eu vou chorar, por nós dois” (“Cada beijo” de 2004).