sexta-feira, 30 de julho de 2010

Sábado etílico-musical


O sol da manhã nem tinha esquentado ainda e já tinha gente reclamando da segunda feira. Não gosto de falar mal dos dias da semana. Nem apelidá-los ou relacioná-los com sentimentos ruins. Este espaço, aqui, leva o nome de um dia nada popular. O ódio aos domingos só não é maior que o ódio às segundas. Mas hoje, segundona típica, feliz estou. Descansado e satisfeito também estou. Uma flanada pelo centrão me deixou assim sorrindo à toa. 

 (@escrevi o texto na segunda, apreciei na terça, questionei na quarta e postei na quinta@)

Sábado foi o dia do passeio. Adoro passear no Centro de São Paulo. Saímos logo ao meio dia com destino à Galeria do Rock. Rever preços de discos de vinil importados, se inspirar para presentear algumas pessoas, comprar incensos, ver o desfile de cabelos e roupas, lembrar de um tempo que aquela galeria não estava na moda. 

(@descobri uma loja de incensos de massala que são vendidos por peso. @descobri que os andares onde as escadas rolantes não chegam são mais vazios@)

Sempre frequentei a galeria por causa das lojas “Baratos Afins” e “Devil Discos”. Já nos 80´s, elas eram gravadoras e distribuidoras também. Além de inúmeros discos de vinil comprei lançamentos de bandas que eles mesmos gravaram, como: Smack, Fellini, Mercenárias, Defalla, Voluntários da Pátria, Bocatto, as coletâneas “Não São Paulo” e “São Power”.

(@vi um vinil duplo do The Black Keys por 175 dinheiros! @assalto! @será que ninguém conhece a loja on-line da amazon?@)

O sub-solo sempre foi da música negra e acessórios afins. O térreo reservado às roupas, tênis e mais acessórios. Os últimos andares ao pessoal do silk screen. De um tempo pra cá lojas relacionadas à cultura rocker (headbangers, góticos, punks, coloridos, emos, rockabillies, etc) estão invadindo todos os andares. Até os botecos “pé sujo” frequentados pelos verdadeiros punks não estão mais lá. Uma pena. Visitei mais duas galerias que, pelo menos, continuam mais resistentes à tradição. A Galeria Presidente, também na rua 24 de maio, e a Galeria Nova Barão na rua Barão de Itapetininga. 

(@numa loja, vi o primeiro álbum do Chemical Brothers, "Exit planet dust", em vinil duplo, por 80 dinheiros.@um pouco mais justo@)

A Presidente tem um pique mais indie e de música eletrônica. Assim como umas lojas inspiradas na cultura jamaicana e outras de equipamentos de discotecagem. Freqüento mesmo a “Sensorial Discos” e a “Velvet CDs”. O Carlos da Sensorial toca no Continental Combo, banda com pitadas psicodélicas, e tocava no Momento 68, quase a mesma formação, mas com uma levada mais mod. Até hoje tenho uma fita K7 do álbum “Tecnologia" do Momento 68. Diria que foi na loja dele que comecei a desejar lançamentos importados de rock de garagem em vinil. 

(@na vitrine da Sensorial está exposto o vinil fresquinho dos "Haxixins". @psicodelia sixty da melhor qualidade, direto da zona leste de São Paulo@)

A Nova Barão abriga lojas que vendem discos de vinil. De nome mesmo, só lembro da “Big Papa Records”, mas passo em todas para olhar promoções e algumas raridades. Lembro da Big Papa porque fazem bazares de discos de vinil pela cidade (Serralheria, Tapas, CCPC) e patrocinam um happy hour bem legal no Alberta#3.

(@na porta fechada da Big Papa Records tinha um aviso dizendo onde eles almoçavam a feijuca cheirosa@)

 Pingamos de bar em bar, de restaurante em restaurante. Seja para comer, para beber ou só para usarmos um banheiro decente. Começamos bem e no Copan: restaurante mexicano chamado “El Coyote”. Pequeno, agradável e - muito importante – servem a cerveja Sol mexicana. No sábado ensolarado e cheio de jalapeños, tomar uma destas no gargalo e com limãozinho dentro da garrafa é um elixir. 

(@o El Coyote não tem banheiro próprio.@usa-se um banheiro coletivo do Edifício Copan@)

Do Copan para a Praça do Paissandu e um lugar clássico de São Paulo, o “Ponto Chic”. Mas foi só para tomar cerveja mesmo. E para curtir um ar condicionado. Nada de sanduíches famosos. Os pratos do dia fumegando nas mesas ao lado e nós dois só na Norteña. Aos sábados, o Ponto Chic acaba recebendo os turistas da Galeria do Rock, eu e minha mulher, neste dia inclusive. Famílias de três gerações com camisetas do Led Zeppelin, Iron Maiden e White Stripes – respectivamente – traçando feijoadas, filés enormes e o Bauru oficial. 

(@o maitre do Ponto chic sentou numa das mesas vazias e começou a almoçar.@porém, antes da primeira garfada, perguntou a todos os clientes se queriam acompanhá-lo@)

Já perto do final da tarde procuramos um boteco para outras cervejas e  para visualizar o pôr do sol. Paramos no Largo da Memória, bem próximo à estação Anhangabaú do metrô. O bar toca forrós de churrascaria no aparelho de DVD. O público é seleto e variado. Nigerianos, famílias que moram por perto com pais alcoólatras, trabalhadores, garis varrendo e dançando, prostitutas de folga. Divertido e etílico o suficiente para fazer um esquenta daqueles, já que a próxima parada era esperada e programada desde cedo. Mas para ir preparando o paladar para a Guinness que íamos tomar em seguida, paramos em outro bote para uma Original, pois lá no Largo da Memória só tinha Skol e Brahma. Achamos outro bote ali no começo da Consolação. Não tinha ninguém. Só os donos preparando algo, ou para abrir ou para fechar o bar. 

(@logo os músicos de samba começaram a chegar @os garçons contaram estórias de badalação e celebridades do vizinho "Royal"@desconfiaram que a gente não ia ficar@)

Então chegamos ao "Alberta#3" para o happy hour chamado Rancho Albertino. Acontece todo sábado das seis da tarde até as 10 da noite. Organizado por Alessandro Psycho e Fel Milward, só se toca vinil numa pick-up Numark portátil e charmosa. Os dois ficam logo na entrada recebendo quem chega e discotecando ali mesmo. Percebe-se a predominância do rock e da música negra nas bolachas. O site da festa avisa: “discos de dixieland, jazz, big bands, rhythm & blues, early soul, country, folk, blues, temas instrumentais, surf, boogaloo, exótica, hot rod, hillbilly, rockabilly, early rock'n'roll, cancioneiro latino-americano (mambo, salsa, rumba, chicha, etc) e brasileiro, música cajun e europeia, batidas africanas e tantos outros ritmos”.  Bem divertido. E eles incentivam que todos tragam seus LPs.

(@ofereci ao Psycho meu Soledad Brothers em vinil chamado "The Hardest Walk". @ele me disse que era uma boa pedida para tocar@)

O lugar é um clube com cara de pub, ou melhor, com jeitão de bares de saguão de hotel, manja? Sofás de couro, luz baixa e nenhum moleque. O nome é inspirado nas músicas “Alberta # 1” e “Alberta # 2” do Bob Dylan. De terça a sábado, o happy hour tem entrada gratuita e servem chopp Guinness, Colorado e Braumeister.

(@não provei nada para comer.@precisávamos guardar nosso apetite para a próxima aventura, o Bar do Estadão@) 

O Psycho (Alessandro) é conhecido da noite paulistana pelo clube Inferno e pela banda de punk-blues Cobras Malditas, que é vocalista. Lembro dele discotecando pedradas de garage-soul na Casa Belfiore, em 2003, numa tarde de sábado deliciosa, antes do show dos Thee Butcher´s Orchestra. Tocaram apertados bem no canto. Houve ainda bazar de roupas e discos na festa. Em outra ocasião, assisti um show dos Cobras Malditas por lá. Até recomendei o happy hour do Alberta # 3 a um amigo que, assim como eu, nos sentimos órfãos da Casa Belfiore, que também era um ótimo lugar para se tomar Guinness.

(@não é só em pubs que tocam U2 e rock farofa, além das inúmeras TVs passando esporte, que se pode desfrutar uma Guinness@)

Notas:
- As fotos são do Flickr do Alberta#3
- Quatro músicas para ouvir, abaixo: Mercenárias com "Além acima", Bob Dylan com "Alberta#1", Cobras Malditas com "São Paulo shakedown" e Momento 68 com "Flamejantes 2".







Alberta#3 by MarceloFabri

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Subtração de bens



Antes que eu me pergunte de onde veio a idéia deste texto, respondo sozinho para economizar pontos de interrogação: do nada. Ou melhor, acho que a idéia tinha um destino, um alvo, mas se perdeu no caminho e me acertou. Grudou e não saiu mais. Tava ventando bastante. Deve ter sido isso. Vamos falar das tais subtrações então.
Eu não tive grandes prejuízos nos assaltos dos quais fui vítima. E também não tive muito medo. Mais susto e impotência do que pavor e raiva. Sempre me interessou pensar sobre essa atitude de tomar algo que não é próprio. Insatisfação? Ganância? Maldade? Covardia? Preguiça? Esperteza? Folga? Veja bem: não quero julgar, quero entender. Não tenho raiva. Tenho curiosidade.

1 - Com autorização

Quando me tiraram as amídalas, até que foi divertido. Eu tinha quatro anos. Minha mãe assinou a autorização no hospital e tudo ficou resolvido com bastante sorvete. Nem senti falta.

2 - Com fome

É...os mais velhos roubavam minha “Mirabel” e minha “Ana Maria” na hora do recreio, em algumas fases da primeira série. Minhas estratégias pra diminuir o confisco eram: levar lanches discretos e pequenos, não dedurá-los para ninguém e sempre tirar um pouco de sarro da situação, algo como: ”estão com fome, hein?”, assim, me davam um pedaço do que afanavam. Como eu era desprovido do sentimento de posse e não dava trabalho para os saqueadores, logo me deixaram em paz.

3 – No vizinho

Minha mãe acorda assustada. Só bem mais tarde, quando não tinha mais pra quem contar, solta para mim que haviam entrado na casa dos vizinhos chineses. Me disse até que eles passaram na frente da nossa casa para encará-la. Ou ela seria a próxima vítima, ou queriam intimidá-la por algum motivo. Será que minha mãe só os reconheceu pelo cheiro de naftalina que a casa chinesa carimbou nos invasores?

4 - Ensaios


Dos dez até os quinze anos, nada demais aconteceu. Nessa época eu nem cheguei a ver nenhum instrumento de convencimento mais eficaz (faca, revólver, estilete, canivete). Se bem que eu meus amigos usávamos um figurino meio punk e isso não atrai quem quer relógios ou tênis caros. Os possíveis assaltantes queriam se autoafirmar no bairro e na região, portanto só ensaiavam ou faziam pose de bandidos. Só apavorar mesmo. E encenavam apenas quando estavam em bando. Sozinhos, eram garotos mal humorados. Onde e quando: saídas de baile de carnaval, quermesses, passeios pela madrugada, saídas de festas, etc. O “modus operandi” mudava quando havia alguma moça conosco. Sempre um dos pavões abria todo o seu enfeite.


5 – Ruas perigosas


Já na idade de chegar em casa bem tarde, frequentei muito o Carbono 14 (Bixiga), o Centro Cultural SP (Vergueiro) e o Espaço Mambembe (Paraíso). Nestes bairros, andávamos mais espertos e preocupados. Invariavelmente pegávamos algum ônibus negreiro na Praça da Sé. E lá, em algumas ocasiões, os moleques moradores de rua encaravam a gente, mostravam armas feitas à mão e levavam cigarros, garrafas de bebida e o dinheiro do ônibus que tinha sobrado. Na segunda feira virava estória – um pouco distorcida – para contar aos amigos do trabalho. Um “quê” de aventura.


6 – A armação perseguida


Sempre gostei de brechós. Assim que comecei a trabalhar, freqüentava um brechó em Pinheiros, Vila Madalena, que se chamava ‘Universo em Desfile”. As sócias tocavam na banda pós punk “Mercenárias”. Meio caro para o meu bolso, mas eu sempre comprei umas armações de óculos lá. Eram aquelas de acrílico cinza e preta, típicas de vovô e vovó, bem vintage mesmo. A vantagem é que já vinham com a lente verde, como eu queria. E fiz a conta certa, eu tive quatro destas. Não era uma coleção: é que me roubavam mesmo. Uma em um acampamento, outra num curso, outra no Espaço Retrô. Talvez o verbo certo seja “afanar”, porque eu nunca soube quem foram os gatunos(as). E a quarta armação? Ah...essa foi na Praça da Sé. Quatro moradores de rua chapados de cola e crack pediram dinheiro e perceberam que tinha pouca gente na rua. Logo me cercaram: “Me dá a lupa, branquelo!”


7 – Mochila bagunçada


Eu e minha mulher chegávamos de Barequeçaba, uma praia em São Sebastião. Feriado prolongado. Do metrô até em casa, na esquina mais escura, um homenzinho nervoso e bêbado aponta um revólver velho e enferrujado para mim. Cansados, sem grana, queimados de sol, só entregamos a mochila cheia de roupas molhadas, chinelos e toda sorte de roupas sujas de areia da Praia de Guaecá (Barequeçaba é feia, tem areia cinza e batida. Guaecá tem areia fina e fofa). Ele pediu desculpas, disse que saiu de casa no Nordeste e não conseguia voltar, não arrumava emprego, etc, etc. Só não fomos beber umas com ele porque estávamos cansados e sem dinheiro.


8 - O posto bancário


Eu era office-boy de uma gráfica importante do Cambuci. Tudo bem que o bairro tinha mais de uma dúzia delas, e todas importantes. Tão grande e famosa que tinha um posto bancário dentro dela. Meu gerente me pediu para sacar um dinheiro. Hoje, sei lá, o equivalente a uns mil reais. Queria ver o sol, as garotas, os carros e fui sacar na agência do Largo do Cambuci. A dupla de assaltantes também queria me ver. “Passa logo! Passa logo, boy!”. Aquele revólver não estava enferrujado e os caras não estavam bêbados. Como explicar para o meu chefe que eu queria liberdade no lugar do posto bancário? Não sei como me entendeu e não contabilizou o prejuízo.


9 – Se for assaltado, não grite


O de sempre, né? Andar em lugares perigosos de madrugada, se portar como se estivesse num cenário de “Ginger e Fred”, algum malandrinho vem pra lembrar que aquilo é a Praça da Sé. Já não morava com a minha mãe há cinco anos. Morava com um casal de amigos e a moça nunca pareceu que reagiria a um assalto. Ela não lutou. Ela gritou muito, muito mesmo. Só não tomamos um “pipoco” porque a arma devia ser de brinquedo. Não entendi nada e não desembolsei nada.


10 – Medroso enrustido


Outro amigo que eu também não imaginava tal reação. Faculdade de Filosofia, mais de dez anos atrás, para economizar o dinheiro do ônibus eu e ele fomos a pé até a estação Bresser do metrô. Antes da rampa tem um jardim muito escuro por causa das árvores. Apareceu um nóia com cara de policial. A arma dele não era de brinquedo e sim uma pistola automática. “Vamu, vamu! A grana!”. Meu amigo dizia que não queria morrer, que fazia qualquer coisa. Eu fiquei com mais medo dele do que do segurança-policial-nóia-assaltante. Com a arma na cara do meu amigo, ele disse: “Queria ser um cara foda agora só pra você ficar com medo de verdade! Some da minha frente, cagão!”. Ele ficou muito puto de só levar bilhetes de metrô e mixaria em dinheiro.     


11 – Golpe do seguro


Quando os primeiro gravadores de CD´s ficaram mais acessíveis, eu continuei sem tê-los. Mas um amigo da faculdade comprou. Eu alugava CD´s (sim, alugava! O mundo muda muito rápido) e levava na casa dele para copiá-los. Sábado bem quente, eu na Rua Coelho Lisboa no Tatuapé, endereço da locadora e loja de CD´s, entram dois caras e anunciam o assalto. O dono da loja subiu, trancou a porta e começou a gritar. Olhávamos para os ladrões com cara de “sobe e mata esse cara!”. Eu até ofereci ajuda para carregar os CD´s e mostrei onde tinha os mais caros. De tanta raiva. Mas logo descobri que, se eles não mataram o dono da loja nem os clientes, algo estava errado. A mulher do amigo que gravava CD´s, minha amiga também, era bancária e sabia que ele tinha um seguro bem gordo lá no banco.


12 – Golpe do seguro 2


Eu e minha mulher, com preguiça de guardar o carro no estacionamento, deixamos o “Uninho” na porta de casa pela madrugada toda. Sexta para sábado. Acordamos e só tinha a marca de óleo. Acionado o seguro, recebemos uma ligação de domingo para segunda, umas três da matina, era a polícia, um delegado bem educado e comunicativo. O carro estava na Vila Rica, zona leste de São Paulo. Só roubaram o estepe. Na mesma época, o noticiário citou algumas seguradoras que repassavam premiações a policiais que encontravam carros roubados. Não posso provar nada. Nem tampouco recuperar o estepe.



Abaixo, para ouvir, a música “Banditismo por uma questão de classe” de Chico Science & Nação Zumbi em duas versões. Uma, original do álbum “Da lama ao caos”, e outra remixada por DJ Cutz do álbum “CSNZ”, lançado após a morte de Chico Science, e possui remixes, versões e gravações ao vivo. Coloco também a música de uma banda que fez muito a minha cabeça e com letra que se encaixa no tema: "Racist friend" dos Specials.
Não assisto noticiários policiais, adorava o “Notícias Populares”, nunca reagi a nenhum assalto, nunca fiquei com raiva dos bandidos e concordo com o Chico Science:


E quem era inocente hoje já virou bandido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fudido
Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade
Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade
Banditismo por uma questão de classe!”







Subtração de bens by MarceloFabri

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Caminhante iluminado



Então está combinado: eu volto a pé para casa. Vinte e cinco minutos, ou um pouco mais, na sola. Me faz esquecer, me faz ficar longe. Só lembro o que convém e só fico perto do que eu quero. Troco o odor de gasolina e óleo diesel pelo cheiro de lanche na chapa que invade o passeio. Em alguns bares é a fumaça do café que perfuma a calçada e faz desenhos na tarde em degradê. Na janela escondida do segundo andar alguém fuma maconha para deixar tudo arredondado e colorido.
No ziguezague das ruas do meu bairro, travessa sim, travessa não, o sol me acerta em cheio na testa. Pôr do sol laranja forte. Adoro ser seu alvo. Entro à esquerda para ficar cego com o laranja dele; entro à direita e uma sombra fria e cheirosa me acalma, me devolve a visão. Mas logo sinto falta da cor. E na primeira travessa ele já inunda a rua, as cores das casas saltam e os reflexos ficam fortes.
O prédio da Avenida Paulista, lá longe, fica todo ruborizado nos últimos andares. O Pico do Jaraguá parece incendiar. Os prédios novos e intrusos dos bairros recém desfigurados aproveitam o feixe de luz para posar.  A dança das árvores, causada pelo vento, monta um efeito estroboscópico, um efeito lisérgico, graças às suas folhas e galhos que alternam freqüência de luz e sombra.
Encontro com garçons e cozinheiros fumando nas portas traseiras dos restaurantes. Trabalhadores de fábrica andam apressados pra chegar em casa e desviam do meu andar malemolente. Se amontoam nos ônibus mal humorados. Moradores de cortiços passeiam sorrindo; moradores de rua sabem que são livres; moradores de condomínios de luxo reclamam de tudo. Fauna completa a transitar no meu caminho.
No alto da colina, prestes a chegar em casa, olho para trás e vejo uma ladeira; olho para frente e vejo outra inclinação, mas não tão íngreme. Estou no alto. Me sinto forte. Ao avistar a Zona Norte da cidade percebo alguns matizes de verde na Serra. Lembro de um outro tempo no mesmo lugar, sem tantas construções obstruindo meus sentidos. Agora, a descida é mais tranqüila, quase me deixo levar. Agora, as lembranças são boas, quase me deixo enganar.
Alguns degraus e estaciono na sala. Água, corpo estirado, fumaça, lembrança de algum solo de Miles Davis e quem sopra no meu ouvido mesmo é Muddy Waters: “Have you ever been walking, walking down that old lonesome road?”
(Coloco 3 músicas que me inspiram em qualquer momento, mas aqui tem um sabor especial. Não só pelo tema, mas também ao clima que remetem. Nada difícil ouví-las enquanto caminho. 1 - O blues garageiro do português "Legendary Tiger Man" em dueto com a  atriz Maria de Medeiros na cover sensacional de "These boots are made for walking", clássico de Lee Hazlewood de 1966 (mais conhecida na voz de Nancy Sinatra); 2 - Muddy Waters solta todo o seu lamento em "Lonesome Road Blues" de 1960, canção de Big Bill Broonzy; 3 - e com Miles Davis e Cannonball Adderley, um standard de 1958 chamado "One for Daddy-O". Não posso deixar de citar um blog cheio de fotos que me inspiraram muito também: http://ceudesaopaulo.wordpress.com/ )