quinta-feira, 22 de julho de 2010

Subtração de bens



Antes que eu me pergunte de onde veio a idéia deste texto, respondo sozinho para economizar pontos de interrogação: do nada. Ou melhor, acho que a idéia tinha um destino, um alvo, mas se perdeu no caminho e me acertou. Grudou e não saiu mais. Tava ventando bastante. Deve ter sido isso. Vamos falar das tais subtrações então.
Eu não tive grandes prejuízos nos assaltos dos quais fui vítima. E também não tive muito medo. Mais susto e impotência do que pavor e raiva. Sempre me interessou pensar sobre essa atitude de tomar algo que não é próprio. Insatisfação? Ganância? Maldade? Covardia? Preguiça? Esperteza? Folga? Veja bem: não quero julgar, quero entender. Não tenho raiva. Tenho curiosidade.

1 - Com autorização

Quando me tiraram as amídalas, até que foi divertido. Eu tinha quatro anos. Minha mãe assinou a autorização no hospital e tudo ficou resolvido com bastante sorvete. Nem senti falta.

2 - Com fome

É...os mais velhos roubavam minha “Mirabel” e minha “Ana Maria” na hora do recreio, em algumas fases da primeira série. Minhas estratégias pra diminuir o confisco eram: levar lanches discretos e pequenos, não dedurá-los para ninguém e sempre tirar um pouco de sarro da situação, algo como: ”estão com fome, hein?”, assim, me davam um pedaço do que afanavam. Como eu era desprovido do sentimento de posse e não dava trabalho para os saqueadores, logo me deixaram em paz.

3 – No vizinho

Minha mãe acorda assustada. Só bem mais tarde, quando não tinha mais pra quem contar, solta para mim que haviam entrado na casa dos vizinhos chineses. Me disse até que eles passaram na frente da nossa casa para encará-la. Ou ela seria a próxima vítima, ou queriam intimidá-la por algum motivo. Será que minha mãe só os reconheceu pelo cheiro de naftalina que a casa chinesa carimbou nos invasores?

4 - Ensaios


Dos dez até os quinze anos, nada demais aconteceu. Nessa época eu nem cheguei a ver nenhum instrumento de convencimento mais eficaz (faca, revólver, estilete, canivete). Se bem que eu meus amigos usávamos um figurino meio punk e isso não atrai quem quer relógios ou tênis caros. Os possíveis assaltantes queriam se autoafirmar no bairro e na região, portanto só ensaiavam ou faziam pose de bandidos. Só apavorar mesmo. E encenavam apenas quando estavam em bando. Sozinhos, eram garotos mal humorados. Onde e quando: saídas de baile de carnaval, quermesses, passeios pela madrugada, saídas de festas, etc. O “modus operandi” mudava quando havia alguma moça conosco. Sempre um dos pavões abria todo o seu enfeite.


5 – Ruas perigosas


Já na idade de chegar em casa bem tarde, frequentei muito o Carbono 14 (Bixiga), o Centro Cultural SP (Vergueiro) e o Espaço Mambembe (Paraíso). Nestes bairros, andávamos mais espertos e preocupados. Invariavelmente pegávamos algum ônibus negreiro na Praça da Sé. E lá, em algumas ocasiões, os moleques moradores de rua encaravam a gente, mostravam armas feitas à mão e levavam cigarros, garrafas de bebida e o dinheiro do ônibus que tinha sobrado. Na segunda feira virava estória – um pouco distorcida – para contar aos amigos do trabalho. Um “quê” de aventura.


6 – A armação perseguida


Sempre gostei de brechós. Assim que comecei a trabalhar, freqüentava um brechó em Pinheiros, Vila Madalena, que se chamava ‘Universo em Desfile”. As sócias tocavam na banda pós punk “Mercenárias”. Meio caro para o meu bolso, mas eu sempre comprei umas armações de óculos lá. Eram aquelas de acrílico cinza e preta, típicas de vovô e vovó, bem vintage mesmo. A vantagem é que já vinham com a lente verde, como eu queria. E fiz a conta certa, eu tive quatro destas. Não era uma coleção: é que me roubavam mesmo. Uma em um acampamento, outra num curso, outra no Espaço Retrô. Talvez o verbo certo seja “afanar”, porque eu nunca soube quem foram os gatunos(as). E a quarta armação? Ah...essa foi na Praça da Sé. Quatro moradores de rua chapados de cola e crack pediram dinheiro e perceberam que tinha pouca gente na rua. Logo me cercaram: “Me dá a lupa, branquelo!”


7 – Mochila bagunçada


Eu e minha mulher chegávamos de Barequeçaba, uma praia em São Sebastião. Feriado prolongado. Do metrô até em casa, na esquina mais escura, um homenzinho nervoso e bêbado aponta um revólver velho e enferrujado para mim. Cansados, sem grana, queimados de sol, só entregamos a mochila cheia de roupas molhadas, chinelos e toda sorte de roupas sujas de areia da Praia de Guaecá (Barequeçaba é feia, tem areia cinza e batida. Guaecá tem areia fina e fofa). Ele pediu desculpas, disse que saiu de casa no Nordeste e não conseguia voltar, não arrumava emprego, etc, etc. Só não fomos beber umas com ele porque estávamos cansados e sem dinheiro.


8 - O posto bancário


Eu era office-boy de uma gráfica importante do Cambuci. Tudo bem que o bairro tinha mais de uma dúzia delas, e todas importantes. Tão grande e famosa que tinha um posto bancário dentro dela. Meu gerente me pediu para sacar um dinheiro. Hoje, sei lá, o equivalente a uns mil reais. Queria ver o sol, as garotas, os carros e fui sacar na agência do Largo do Cambuci. A dupla de assaltantes também queria me ver. “Passa logo! Passa logo, boy!”. Aquele revólver não estava enferrujado e os caras não estavam bêbados. Como explicar para o meu chefe que eu queria liberdade no lugar do posto bancário? Não sei como me entendeu e não contabilizou o prejuízo.


9 – Se for assaltado, não grite


O de sempre, né? Andar em lugares perigosos de madrugada, se portar como se estivesse num cenário de “Ginger e Fred”, algum malandrinho vem pra lembrar que aquilo é a Praça da Sé. Já não morava com a minha mãe há cinco anos. Morava com um casal de amigos e a moça nunca pareceu que reagiria a um assalto. Ela não lutou. Ela gritou muito, muito mesmo. Só não tomamos um “pipoco” porque a arma devia ser de brinquedo. Não entendi nada e não desembolsei nada.


10 – Medroso enrustido


Outro amigo que eu também não imaginava tal reação. Faculdade de Filosofia, mais de dez anos atrás, para economizar o dinheiro do ônibus eu e ele fomos a pé até a estação Bresser do metrô. Antes da rampa tem um jardim muito escuro por causa das árvores. Apareceu um nóia com cara de policial. A arma dele não era de brinquedo e sim uma pistola automática. “Vamu, vamu! A grana!”. Meu amigo dizia que não queria morrer, que fazia qualquer coisa. Eu fiquei com mais medo dele do que do segurança-policial-nóia-assaltante. Com a arma na cara do meu amigo, ele disse: “Queria ser um cara foda agora só pra você ficar com medo de verdade! Some da minha frente, cagão!”. Ele ficou muito puto de só levar bilhetes de metrô e mixaria em dinheiro.     


11 – Golpe do seguro


Quando os primeiro gravadores de CD´s ficaram mais acessíveis, eu continuei sem tê-los. Mas um amigo da faculdade comprou. Eu alugava CD´s (sim, alugava! O mundo muda muito rápido) e levava na casa dele para copiá-los. Sábado bem quente, eu na Rua Coelho Lisboa no Tatuapé, endereço da locadora e loja de CD´s, entram dois caras e anunciam o assalto. O dono da loja subiu, trancou a porta e começou a gritar. Olhávamos para os ladrões com cara de “sobe e mata esse cara!”. Eu até ofereci ajuda para carregar os CD´s e mostrei onde tinha os mais caros. De tanta raiva. Mas logo descobri que, se eles não mataram o dono da loja nem os clientes, algo estava errado. A mulher do amigo que gravava CD´s, minha amiga também, era bancária e sabia que ele tinha um seguro bem gordo lá no banco.


12 – Golpe do seguro 2


Eu e minha mulher, com preguiça de guardar o carro no estacionamento, deixamos o “Uninho” na porta de casa pela madrugada toda. Sexta para sábado. Acordamos e só tinha a marca de óleo. Acionado o seguro, recebemos uma ligação de domingo para segunda, umas três da matina, era a polícia, um delegado bem educado e comunicativo. O carro estava na Vila Rica, zona leste de São Paulo. Só roubaram o estepe. Na mesma época, o noticiário citou algumas seguradoras que repassavam premiações a policiais que encontravam carros roubados. Não posso provar nada. Nem tampouco recuperar o estepe.



Abaixo, para ouvir, a música “Banditismo por uma questão de classe” de Chico Science & Nação Zumbi em duas versões. Uma, original do álbum “Da lama ao caos”, e outra remixada por DJ Cutz do álbum “CSNZ”, lançado após a morte de Chico Science, e possui remixes, versões e gravações ao vivo. Coloco também a música de uma banda que fez muito a minha cabeça e com letra que se encaixa no tema: "Racist friend" dos Specials.
Não assisto noticiários policiais, adorava o “Notícias Populares”, nunca reagi a nenhum assalto, nunca fiquei com raiva dos bandidos e concordo com o Chico Science:


E quem era inocente hoje já virou bandido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fudido
Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade
Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade
Banditismo por uma questão de classe!”







Subtração de bens by MarceloFabri

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