quarta-feira, 14 de julho de 2010

Caminhante iluminado



Então está combinado: eu volto a pé para casa. Vinte e cinco minutos, ou um pouco mais, na sola. Me faz esquecer, me faz ficar longe. Só lembro o que convém e só fico perto do que eu quero. Troco o odor de gasolina e óleo diesel pelo cheiro de lanche na chapa que invade o passeio. Em alguns bares é a fumaça do café que perfuma a calçada e faz desenhos na tarde em degradê. Na janela escondida do segundo andar alguém fuma maconha para deixar tudo arredondado e colorido.
No ziguezague das ruas do meu bairro, travessa sim, travessa não, o sol me acerta em cheio na testa. Pôr do sol laranja forte. Adoro ser seu alvo. Entro à esquerda para ficar cego com o laranja dele; entro à direita e uma sombra fria e cheirosa me acalma, me devolve a visão. Mas logo sinto falta da cor. E na primeira travessa ele já inunda a rua, as cores das casas saltam e os reflexos ficam fortes.
O prédio da Avenida Paulista, lá longe, fica todo ruborizado nos últimos andares. O Pico do Jaraguá parece incendiar. Os prédios novos e intrusos dos bairros recém desfigurados aproveitam o feixe de luz para posar.  A dança das árvores, causada pelo vento, monta um efeito estroboscópico, um efeito lisérgico, graças às suas folhas e galhos que alternam freqüência de luz e sombra.
Encontro com garçons e cozinheiros fumando nas portas traseiras dos restaurantes. Trabalhadores de fábrica andam apressados pra chegar em casa e desviam do meu andar malemolente. Se amontoam nos ônibus mal humorados. Moradores de cortiços passeiam sorrindo; moradores de rua sabem que são livres; moradores de condomínios de luxo reclamam de tudo. Fauna completa a transitar no meu caminho.
No alto da colina, prestes a chegar em casa, olho para trás e vejo uma ladeira; olho para frente e vejo outra inclinação, mas não tão íngreme. Estou no alto. Me sinto forte. Ao avistar a Zona Norte da cidade percebo alguns matizes de verde na Serra. Lembro de um outro tempo no mesmo lugar, sem tantas construções obstruindo meus sentidos. Agora, a descida é mais tranqüila, quase me deixo levar. Agora, as lembranças são boas, quase me deixo enganar.
Alguns degraus e estaciono na sala. Água, corpo estirado, fumaça, lembrança de algum solo de Miles Davis e quem sopra no meu ouvido mesmo é Muddy Waters: “Have you ever been walking, walking down that old lonesome road?”
(Coloco 3 músicas que me inspiram em qualquer momento, mas aqui tem um sabor especial. Não só pelo tema, mas também ao clima que remetem. Nada difícil ouví-las enquanto caminho. 1 - O blues garageiro do português "Legendary Tiger Man" em dueto com a  atriz Maria de Medeiros na cover sensacional de "These boots are made for walking", clássico de Lee Hazlewood de 1966 (mais conhecida na voz de Nancy Sinatra); 2 - Muddy Waters solta todo o seu lamento em "Lonesome Road Blues" de 1960, canção de Big Bill Broonzy; 3 - e com Miles Davis e Cannonball Adderley, um standard de 1958 chamado "One for Daddy-O". Não posso deixar de citar um blog cheio de fotos que me inspiraram muito também: http://ceudesaopaulo.wordpress.com/ )

2 comentários:

Deh disse...

aaah...deveria ser proibido vc passar tanto tempo sem escrever.

Esse texto ficou otimo. Deu uma tonalidade laranja a esse dia cinza.

Adorei acompanhar os seus passos.

bjs

Karla disse...

Que bom que o Céu de São Paulo inspira pessoas : )
Tks!