quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Lambe fogo

(Feira livre de domingo)


Lambe Fogo era o mendigo mais conhecido do bairro. Não só pelo tempo que já deixava seu rastro fedorento pelas ruas, como também por sua habilidade em recitar poemas. O apelido deve ter uns 20 anos de idade. Época em que desafiava os freqüentadores do botequim a comer pimentas em quantidades cavalares. Ganhava muitas doses de cachaça com essas apostas. Seu estômago e intestino devem depurar até prego novo, afinal cachaça e pimenta aos montes fazem de qualquer mortal uma incubadora de cirrose e doenças afins.

Quanto à sua hospedagem definitiva nas ruas, conheci pelo menos quatro versões diferentes. Todas amorosas. Desde não satisfazer a mulher que o largou, até encontrar a esposa lasciva nos braços de algum trabalhador de meio período. Conheci as versões em botecos, e acredito que devam existir mais entre as mulheres, nos salões de beleza e quitandas pelo bairro afora. Os poemas que Lambe Fogo lia eram atolados nessa aura de traição e desilusão amorosa. Todos de gosto muito duvidoso e desconhecidos. Talvez um caminho para entender sua chegada às ruas.

Eu o encontrava aos domingos na feira livre. Prato cheio para se exibir e misturar o seu odor de carniça com o das frutas. Às vezes ele tentava ser um “metrossexual” e se perfumava. O resultado era insuportável: imagine fezes misturadas com alfazema; cadáver em decomposição misturado com Channel nº5. Algo do gênero. Ele adorava ser um “gentleman” com suas poesias e perfumes, mas o efeito sobre as mulheres era desastroso.

Mas Lambe Fogo era insistente. Desfilava pela feira. Deixava a dona da banca de pastel, a Sra. Mitiko, de cabelos - e narinas – em pé. Ele não só afastava sua freguesia quando estava por perto, mas também a deixava sem poder respirar e com ânsia de vômito. Seu hálito remetia a odores de catacumbas de múmias que nunca tomaram sol, temperadas com um pouco de cachaça, evidente.

E com esse hálito matador que suas poesias eram odorizadas e percorriam as manhãs de domingo no meu bairro. Há uns dez anos atrás, a molecada não era tão avessa ao bebum sensível. Mas essa nova geração odeia sua presença, o considera persona non grata. É muito provável Lambe Fogo acordar incendiado no meio de alguma noite. Essa turma é capaz de qualquer maldade. Aliás, essa mesma geração é repleta de dependentes de drogas pesadas que ficam vagando pelas noites e cometendo pequenos crimes para saciar seu vício violento e urbano. Mas Lambe Fogo nunca representou perigo. Pelo contrário. Era a diversão mal cheirosa da região.

A última vez que o vi na rua, estava se escondendo da chuva num ponto de ônibus. O ponto estava lotado. Era engraçado ver aquela parada de ônibus cheia de gente tomando chuva bem distante dele e, ao mesmo tempo, Lambe Fogo sentado de forma muito confortável no banco. Era como se houvesse um buraco e todos em volta. Naquele dia, não recitou nenhuma poesia. Estava irritado com aquela chuva. Detestava água.


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