segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Despedida

(Domingo de verão)


Passa da uma

você deve estar na cama
Você talvez
sinta o mesmo no seu quarto
Não tenho pressa
Para que acordar-te
com o
relâmpago
de mais um telegrama
?

(Vladimir Maiakovski)

A campainha estava quebrada. O som que Fernanda fazia batendo na porta influenciou um pequeno sonho do meu cochilo. Ficou cômica a interferência. Era como se essa quimera fosse editada em velocidade bem maior: eu descia a escada muito rápido e abria a porta. Várias vezes esse mesmo trajeto. Num pequeno intervalo de tempo, talvez trinta segundos, ouvi a batida e abri a porta umas dez vezes. Bem engraçado. E só para personalidades. Os primeiros foram Freud, Reich e Jung abraçados – não podiam faltar quando se fala em sonhos. Alguns nem lembro, mas Andy Warhol, Frida Kahlo, Jimi Hendrix, Antonio Conselheiro e Glauber Rocha estavam lá me chamando. Antes de acordar ainda recebi “Cobi”, o mascote das Olimpíadas de Barcelona. Um pequeno sonho lisérgico. Só percebi que era Fernanda, quando ouvi o miado do gato preto dos telhados. Ele vinha por cima, mas sempre chegavam juntos. Acordei.

Desci quase tão rápido quanto no sonho. “Demorei pra te atender?”. Ela riu e me confortou com um beijo aromatizado de gim. Tirou o tênis e nossos pés faziam um ritmo na escada de madeira, acompanhando o chiado de agulha do lado “A” do disco que já tinha acabado e que reverberava lá em cima nos alto falantes. Ao mesmo tempo, ela assoviava uma canção da banda “Stereolab”. Perfeita trilha para quem somente sobe alguns degraus.

“Que cheiro bom”, disse sorrindo. Era o curry gritando na cozinha. Se transformou numa casca amarela no assado de frango. Estava faminta. Beliscou a comida nas panelas mesmo e nem pediu ajuda para esquentar seu prato, enquanto abria a porta e chamava o gato preto dos telhados. Ele veio muito rápido e nem notou minha presença. Os dois eram muito amigos, talvez até se tornassem confidentes, caso o gato aceitasse morar na casa dela. Seus olhos verdes encontravam os olhos verdes de Fernanda, seus cabelos eram tão negros quanto a cor dos pelos do gato. A conversa dos dois, recheada de onomatopéias, não me incluía. Quando terminaram, ela voltou com o prato cheiroso e quente, e o gato ficou na janela nos olhando. Era muito orgulhoso para entrar na minha casa. Fernanda colocou o lado “B” do disco para sonorizar sua pequena ceia.

Um temporal me aproximou de Fernanda. Foi fugindo da chuva que a conheci. Entre algumas opções para me proteger de tanta água, o ponto de ônibus ou alguma marquise não eram tão atrativas quanto o balcão de um bar. Fernanda não se protegia da chuva, mas também estava lá. Dez minutos depois que cheguei, saiu de uma mesa típica de confraternização de fim de ano e veio ao balcão reclamar de alguma coisa. O bar era no centro da cidade, mas já a tinha visto pelo meu bairro. Devia morar bem perto. Ela reclamava e ia se pendurando no balcão, falando alto e gesticulando. Quando estava próxima de mim, não agüentei e soltei: “Não espere muito desse bar, vizinha.”. Olhou-me firme, ainda furiosa. Virou um pouco para o lado, talvez para se acalmar, talvez para ser educada comigo, e respondeu que não era possível a coincidência. Caso fosse vizinha, ficaria envergonhada de tê-la encontrado numa espelunca daquela. “Adoro espeluncas” respondi rindo. Consegui convencê-la de que era mesmo seu vizinho e que conhecia um bartender mais caprichoso que prepararia um blood mary do jeito que ela queria, ali perto, num bar gay na Praça da República.

Já no outro bar, falamos de muitas coisas, menos de nós mesmos. Fomos muito bem servidos pelo bartender que tanto confio e trocamos nossos meios de contato. Mas não nos telefonamos. Só a revi quando apareceu na porta da minha casa, de repente, numa madrugada dessas, chegando da rua. “Oi vizinho”, seu sorriso me inebriou. Ela era uma típica italiana alta, com bochechas vermelhas, nariz bem formado e fino, os olhos verdes e os cabelos negros – lindos e já citados no composit com o gato preto dos telhados.

Dentro de casa, ela se revelou uma companhia ainda melhor que no bar. Divertida, sagaz e simples ao mesmo tempo. E então ela surgia em várias madrugadas. Sempre aos fins de semana. Geralmente de sábado para domingo. Nós não falávamos do dia a dia. Não soube qual sua profissão, nem soube de sua família. Se ela tivesse mentido seu nome para mim, pouco importaria. O importante era o vinho, a erva que ela trazia para fumarmos, era o que cozinhávamos, eram nossos carinhos e os prazeres pela noite. Há um tempo atrás, quando avistava Fernanda pelo bairro, nunca poderia imaginá-la acordando ao meu lado.

Era estranho e delicioso esse convívio na minha casa, na forma de um segredo dentro de um esconderijo. Nunca perguntei por que somente nesses dias e nesses horários. Talvez porque namorava outro homem, mas nunca quis comprovar. Sabem-se lá quantos tombos levei antes de me controlar da ansiedade de querer saber tudo e ver todos os meus desejos realizados. Aprendi na hora certa. Do contrário, Fernanda nunca voltaria, nunca me daria tanto prazer. Era uma espécie de moeda para tê-la por perto. Bem educativa essa tática.

Naquela madrugada de frango com curry, fizemos de tudo. Dançamos, nos entorpecemos, falamos da lua, ela leu muitos poemas de Maiakovski, acordamos nus e cansados. Rimos muito quando ela encarnou o clichê “Kim Basinger anos 80” vestindo minhas roupas de trabalho para andar pela casa. Só estranhei o fato dela não ter ido embora quando ainda estivesse escuro. Resmungou ainda com sono que dormiria mais e que eu devia fechar a janela para escurecer o quarto. Aquilo era inédito.

Pela primeira vez vi o sol batendo no seu rosto. Seus olhos ficaram mais claros e seu cabelo mais brilhante. Sua pele era clara, muito clara, e a luz do dia lhe acariciava com cuidado. Era muito mais linda de dia. Fiquei derretido com a sua presença vestida em minhas roupas, deixando rastros pela casa.

O domingo foi uma cópia diurna do que fazíamos nas madrugadas. Todos os prazeres, todas as risadas, todas as horas entorpecidas, os odores de incenso, comida e cannabis. Foi longo, muito longo. Aproveitamos cada minuto. Nossas palavras pareciam objetos voando pela casa. Se materializavam. Ela só se preparou para ir embora ao anoitecer. Saiu na hora que a lâmpada do poste acendeu. Sua despedida foi como qualquer outra, igual às anteriores.

Tive dificuldade para dormir. Um pressentimento e uma desconfiança que nunca mais a veria me invadiram por completo. Perdi o controle e a ansiedade tentava me dizer que ela passou o domingo inteiro comigo para servir como despedida. Me acalmei somente quando lembrei da moeda, do preço de tê-la por perto: ansiedade controlada.

Alguns dias depois, na mercearia do bairro, alguém falava dela, talvez um familiar. Contava ao funcionário que ela tinha mudado da cidade junto com o namorado para uma cidade no sul do país. Se casariam logo. Percebi que era somente um sonho, que eu não estava na mercearia. Acordei. Mas mesmo assim nunca mais a vi.


7 comentários:

Zúnica disse...

O que você escreve é fic~ção, ams não deixa também de ser real. Afinal, , si, eu peguei o espírito do teu texto desde o primeiro, porque em todos eles é o mesmo "marcelo". E eu adoro o Eu-lírico que você adota nos textos. É tão palpável, tão verossímil, tão humano - ou mais - do que a maioria das pessoas que conheço.

Com relação á minha crítica, estou tão curioso quanto você...

Apareça hoje por lá! Assim, você aproveita e faz uma excurssão com o povo da Vergueiro pra o Boteco da Manú (temops programa de milhagem de cevada!).

Anónimo disse...

Levei um susto ao ler o post do Plínio, pois pensava em escrever exatamente isso: será vc. a persona de seus textos ? às vezes, penso que não devo perguntar, e tenho certeza de que vc. nem deve pensr em responder. De qualquer forma, adorei encontrar um texto "sem tema prévio", seus textos falam de muitos sentimentos comuns, mas eles não são comuns. Seus textos são profundos, mas não são deprê, são líricos, simplesmente líricos.
Ana Ziccardi

Zúnica disse...

A-há! Viu só, professora?? A sensibilidade tá alta!

Marcelo, vê se aparece hoje, hein! Curti teus colegas, povo muito gente boa!

Sabrina Rocha disse...

Amor de perdição...

Deh disse...

Ainda não li o texto.
Prometo voltar p/ ler.

Só passei aki p/ responder:
eu vi sim q o filme ganhou o urso de ouro. O cinema brasileiro esta cada vez melhor. \o/
^^

kisses e eu volto em breve!

Deh disse...

Como o prometido... Voltei!

Já disse antes, mas realmente esse texto deve ser na verdade um relato.
É maravilhoso. Parece q estou invadindo um diário secreto.

Adoro a forma como manipula as cenas cotidianas tornando-as tão cheias de sentimentos e intensas....

ah, não sei como descrever....
resumindo:
Simplesmente fantástico!

Kisses

Deh disse...

Eu já devia ter decorado cada linha desse texto de tantas e tantas vezes q o li. Sempre q bate a saudade de seus textos corro pra cá.

Sou apaixonada pela Fernanda e o gato preto.
E não importa se é a 1,2,3....décima vez q o leio. O sentimento é sempre o mesmo.
Acho fantastico e adoro cada linha. Sofro com sua personagem a ansiedade da partida dela, e agora sofro ate por antecedencia pq sei q ela se vai. rs*

Bjs