terça-feira, 26 de agosto de 2008

Dois LPs de cantoras negras


Optei por mudar um pouco de estilo nas compras e importei dois vinis de cantoras negras. Uma é Erykah Badu, a diva da nova soul music (ou nu-soul). A outra é Sharon Jones, a cantora que, com sua banda (os Dap Kings), inspirou o recente álbum de Amy Winehouse. Badu faz uma música negra que olha para o futuro e Jones quer sonoridades do passado. Enquanto a primeira aposta em timbres digitais, a segunda procura os timbres valvulados. Elas têm ainda mais características opostas, mas minha escolha não foi pensada nessa oposição. Foi sem querer. Lá no site da Amazon, enquanto comprava, nem pensei nisso.

Conheci Erykah Badu dez anos atrás com o seu álbum de estréia (“Baduizm”, de 1997) premiado com Grammys e estourado na Billboard americana. Misturava jazz com batidas hip-hop feitas na mão, sem Djs. Na época diziam que o timbre de sua voz lembrava muito Billie Holiday. Sua música possui um clima sofisticado sem ser pedante, pois mantém aquele bom gosto dos músicos negros e não deixa que a fama estrague seu charme ou mude suas composições. Essa presença do jazz foi diminuindo com o tempo e hoje está mais influenciada pela soul music, mas continua classuda. Ela não grava tantos álbuns. Fica períodos longos sem lançar discos para se dedicar à maternidade, mas sempre grava com artistas do hip hop em participações especiais. No total possui quatro álbuns e um gravado ao vivo.

Sharon Jones, entretanto, conheci somente este ano, quando fiquei curioso e interessado pelo groove do álbum “Back to black” da Amy Winehouse. Uma gingada muito parecida com os discos das consagradas gravadoras Motown e Stax. Essa sonoridade, que me remete diretamente à soul music sessentista, vem da banda Dap Kings. Descobri que eles tocam com Sharon Jones antes de tocar com a garota problema de Londres, que ouviu a negrona americana e ficou de quatro. Outra característica oposta à Erykah Badu, que gravou um álbum aos vinte e poucos, é que Jones sempre quis ser cantora, mas gravou seu próprio álbum depois dos 40 anos. Contribuía aqui e ali na década de 70 como backing vocals e, aos 30 anos, resolveu entrar para a polícia. Foi agente numa prisão e depois vigilante de carro forte. Voltou a cantar e gravar quando encontrou os Dap Kings, banda que só se interessa por instrumentos analógicos e continua com os timbres da década de 60. Veja aqui um video clip que também tem essa preocupação retrô. Até a capa do disco, conforme foto acima, tem a preocupação de parecer antiga. Jones tem uma voz poderosa, de longo alcance e tão suingada que chacoalha o esqueleto de qualquer defunto.

A música negra me acompanha desde a infância. Cresci nos anos 70 e era fácil ouvir hits de negões em qualquer lugar. Mais fácil para mim que tinha uma avó negra, madrasta da minha mãe, que é bem branquinha. Ela nem ouvia tanto os sucessos da soul music brasileira ou internacional, mas seus primos e tios, todos de black power bem penteado, ouviam a tarde inteira para alegrar meus sábados e domingos no bairro Casa Verde. Carrego esse banzo até hoje quando escuto Stevie Wonder, Marvin Gaye, Otis Reding, Jackson Five, ou as Supremes, as Marvelettes, e também os brasileiros Cassiano, Tim Maia, Hyldon. Ainda me dão aquela sensação de sábado ensolarado e bons sentimentos. E ainda hoje, até outros artistas que tocam algo parecido, ou artistas que soltam um pequeno falsete, seja Lenny Kravitz imitando Curtis Mayfield ou K. L. Jay (da banda Jamiroquai) imitando Stevie Wonder, também me levam a esse sentimento.

Pouco depois dessa época da Casa Verde, íamos sempre para o apartamento da minha tia na Rua Clélia e, lá de cima, uma vista bonita para o Pico do Jaraguá, para boa parte da zona norte e para as estações de trem da Lapa e da Água Branca, também me inspiravam porque vinham acompanhadas de mais música negra. Mas aí já era a década de 80 e eu mesmo escolhia os discos para tocar. Mais sábados ensolarados com cheiro de pastel de feira, cheiro de frutas frescas e os negões na vitrola. Na adolescência, eu descobri o rock e ele ofuscou um pouco esse gosto. Quando ouvia música negra, eram somente as novidades do hip hop. Voltei a ouvi-la com mais freqüência por volta dos meus vinte anos de idade. E não parei mais. Aprendi que brancos não fazem músicas românticas: fazem músicas piegas. Mas a música negra sim, ela toca o coração de verdade. Ou então é doidona, dançante e cheia de vigor.

As coisas ficaram assim: o álbum que comprei da Sharon Jones se chama “Dap Dippin” de 2001. Cheio de suingue, lógico, deixa essas cantoras branquelas da moda no chinelo. A banda recheia o disco de forma sensacional, com direito até àquelas entradas a la James Brown, quando a banda apresenta o cantor com uma levada dançante e rápida de fundo e depois, no final, se despede dele da mesma forma. Já o LP que comprei da Erykah Badu se chama “New amerykah – part 1 (4th world war)”. Ela promete uma trilogia com o mesmo nome. Em vinil, o álbum é duplo. Algumas músicas têm texturas eletrônicas bem sutis e a voz dela preenchendo, outras têm apelo mais dançante. Deixarei aqui o clipe de “Honey”, um sonzaço com uma batida hip hop deliciosa, bem marcada. Reparem que ela aparece cantando na capa de vários discos clássicos da música negra ou da música pop. São 13 capas de vinis e uma revista, com capa também clássica. Veja aqui a relação destes álbuns. Eu só consegui acertar 4 LPs antes de ver esse site dando a letra. Fiquei muito satisfeito com a compra.


2 comentários:

Fernando Graça disse...

Resenha formidável, sustentada por um bom escritor que sabe formar palavras refinadas. Eu gostei, inclusive, de suas conclusões comparativas e profundas a respeito da música.

Abs,
Fernando

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Ana Ziccardi disse...

Maravilhosa resenha.Delicioso texto. Suas lembranças da vida são emocionantes, vc. precis aescrever um livro, menino.

Beijos

Ana Ziccardi