Já é o
terceiro dia útil, mas com uma sensação que os dois primeiros não existiram, ou
não se fizeram notar. Essa lacuna na lembrança é efeito da medicação de choque
da Segunda e da letargia da Terça. Mas hoje, não. Completamente abstêmios,
tornam-se preparados para trabalhar com afinco, para enfrentar adversidades,
combater a preguiça e se tornarem pessoas melhores. O dia convida.
Ele,
espertamente, fica no meio da semana e se torna simpático, um verdadeiro
diplomata. Figura carismática e envolvente, como um vereador, reverendo ou
pastor, a Quarta Feira promete um futuro melhor, mas deixa claro que é preciso
ação. É daí que surge essa “servidão voluntária”, essa noção que é preciso
colocar a mão na massa para que o fim de semana chegue logo. Assim, quita-se os
pecados de segunda e terça, e o passaporte da alegria da Sexta está
garantido.
Logo cedo, o
sol pela janela e não uma nebulosidade; um despertar, e não uma ressaca. A
Quarta Feira vem trazer a luz e o brilho, assim como tirar o mofo e o
encardido. Pois, nela, acorda-se purificado, limpo e descansado das mazelas
anteriores. Uma toalha branca, perfumada, pronta pra enlaçar com segurança e
conforto quem acredita na potência desse dia. Num tom messiânico, a Quarta
profetiza: “Ela voltará! A Sexta Feira está próxima...mais próxima do que se
imagina!”
Mas, calma,
calma. Os ateus e agnósticos não precisam estranhar. A quarta não é um dia
religioso e o texto não quer ser ecumênico. É que quando se trata de cair
na real, de se tornar responsável, a culpa cristã toma conta da jogada.
Aí o tom religioso vira marketing, atrai audiência. Isca fácil para os culpados
desavisados e um bom mote para entreter quem lê agora esses parágrafos perdidos
no ciberespaço.
Então, HerrKapitän, naveguemos no lado
materialista da força. Afinal, não podemos esquecer que o messianismo
não é exclusividade dos religiosos. Líderes políticos são (principalmente os de
esquerda) e oficiais das Forças Armadas também são. É preciso que a militância
e os soldados defendam a causa. O mundo corporativo utiliza o tom levanta-moral
cotidianamente. Observe uma equipe de vendedores e perceba ali uma "causa".
Nem tudo na
quarta é só devoção, esforço e consciência. A diversão também é garantida. No
almoço se come feijoada em
São Paulo como prato do dia; à noite as clássicas partidas de
futebol da rodada animam torcidas barulhentas; no emprego careta, a turminha
mais descolada e/ou alcoólatra embala o primeiro happy hour; em algumas galerias de arte é dia de vernissage; e pode
ter certeza que festinhas na Quarta Feira não deixam ninguém decepcionado. Alguns
anos atrás, antes das carteirinhas de estudantes terem força e falsificação facilitada, a
Quarta era o dia da semana que se pagava meia-entrada. Ave Cine Belas Artes!
A Quarta feira de Cinzas é a mais famosa no ano.
É o dia que se reverencia o astro Mercúrio, daí em espanhol chamá-la Miércoles e na língua italiana, mercoledì. Em inglês
diz-se wednesday, dia de Woden e em sueco onsdag, dia de Odin. No catolicismo, a quarta-feira é o dia para se
rezar pelos acometidos por enfermidades.
Ele coça a cabeça bem perto da nuca e pergunta para quem estiver ao lado:
“Qual o dia da semana hoje?”. A resposta demora e a impressão é que o
interlocutor não ouviu. Mas logo vem um som de trem passando pela estação sem
parar: “Terça! Terça!”.
A terça feira é um dia artificial, feito plástico. Um dia-bolha. Ele não
existe. Da mesma forma que a ciência formula hipóteses, a imaginação o cria
para servir como uma ponte entre o susto da segunda e o despertar da quarta
feira. Um dia protocolo. Ele passa e ninguém sente falta. Compromissos e
compromissos e todos se parecem com robôs a obedecer ordens em combinações de
zero e um.
Letárgico, como o efeito colateral de alguns remédios, o dia passa
arrastado. É o medicamento da véspera agindo. O peso da segunda feira só se
aguenta com um sossega leão e a reação adversa é a apatia. Contra indicado para
aqueles que querem tudo. Nem triste, nem alegre. Nem ágil, nem molenga. Nem
cheio, nem vazio. Nem sim, nem não.
No entanto, é eficiente. O que pode parecer indiferença para alguns pode
ser concentração para outros. Um estado de espírito que não aparenta ter
objetivo, mas tem. Aos desavisados e aqueles que não sabem o que vieram fazer
neste mundo, a terça só “passa”. Mas para quem está acostumado com o ritmo e o
papel da meditação, o dia é perfeito. Mente vazia para a conexão que realmente
vale a pena.
Talvez o dia mais indicado para se drogar. Nenhum filtro, nenhuma
ansiedade, nenhuma predisposição equivocada. O “barato” puro e tranqüilo. Como
quem dorme bem e acorda descansado e disposto. Na medida.
Justamente pela falta de excessos, o dia é charmoso. Não há soberba,
exacerbação ou gula. Ele se guia pelo simples e necessário e se torna elegante.
Está mais para Chanel do que para o Rococó. Não há espaço para a criatividade
genial, mas nem por isso só a inércia toma conta.
A Terça Feira é o dia dedicado ao planeta Marte, tanto que em espanhol se
diz “martes”, e em italiano “martedi”. E se algum alemão lhe perguntar que dia
é hoje, solte um “dienstag”.
A imagem é de
trânsito e fumaça. Logo cedo. O céu azul ou cinza, tanto faz. O sol ardido no
rosto ou a garoa fria e a segunda feira nunca muda de personalidade. Muita
gente com pressa e as ruas lotadas de sujeira. Desconfortável e empoeirada.
Assim é toda segunda. Aparência masculina e pensamento feminino. Imagem de
desleixo e lixo emporcalhado (homem) com ritmo apressado e sem paciência
(mulher). Como uma Marginal Tietê cinza empurrando e furando a fila.
Segunda é o
terminal de ônibus na estação Armênia do metrô. Lotado e imundo, cheio de
camelôs gritando. O cheiro ruim do rio Tamanduateí, a rua esfumaçada pelos ônibus
e caminhões desregulados. Segunda é o assassinato do sonho. É o caboclo que
pensa: “tudo o que eu queria no domingo hoje não dá mais”. Um “caia na real’
forçado e sem saída. Se alguém levanta o dedo, a voz ou o nariz contra o humor
de segunda feira, logo é repreendido. Não há ocasião para se rebelar. A
aceitação indiscriminada do dia não pode ser colocada à prova. O rebelde irrita
o resignado. A culpa e o pecado só são absolvidos pelo mau humor.
O máximo que
se admite de distração e pseudo-alegria são os comentários masculinos dos jogos
de futebol e as lembranças femininas dos passeios e noitadas. E rápido! Pois logo
os chefes e patrões vão destilar ódio com enxofre pelo ar e empregados vão
engolir chumbo quente. Quem sabe, nos próximos dias da semana, o ferro esfrie e
o odor da raiva fique mais perfumado. Assim, na próxima segunda, tudo volta ao
normal para o embate.
Não se
preocupe. Sempre sobra um pouco para a marmita. Sempre sobra uma briga. Sempre
sobra um arranhão. E nunca sobra dinheiro. A página do livro é marcada pelo
comprovante amarelo de saldo bancário. O que atrapalha a concentração na
leitura? O susto das despesas ou o barulho do primeiro dia da semana? Leia com
um barulho deste. Ou com uma culpa desta.
O almoço é o
medicamento da segunda. A hora do analgésico. A tia fazendo aviãozinho com a
colher e dizendo que é gostoso. Tomara que sim. Nem toda marmita é gostosa. Nem
todo mundo é feliz cozinhando. E se for pagar pela refeição, a expectativa é
maior ainda. O efeito colateral discriminado na bula pode ser pior. Esquecer de
uma dor de cabeça com um soco no estômago.
Na semana é o
primeiro dia útil, mas o segundo do calendário. Em espanhol “lunes’, em
italiano “lunedi”, em inglês “Monday” e em alemão “Montag”. As línguas
reverenciam a Lua neste dia.
Eu não tenho
nada contra as segundas. Já o Garfield...
Gosto destes dias que pouca gente está na rua. A felicidade coletiva me incomoda. Gente feliz se torna folgada e espaçosa. Adotam uma convicção que todos também estão – ou precisam estar - felizes. E ai de quem não entra no ritmo: vira peixe fora da água, o “estraga prazeres”, o enjoado
Domingo já é um dia que a maioria não sai da toca e, quando faz menos de 10ºC, as ruas ficam lindas. Depois, para mim, a solidão parece inevitável no frio. Numa temperatura desta eu só suporto uma companhia amorosa. O que conversar com um amigo cheio de blusas? O que sugerir para a família assistir toda encolhida? Que piada fazer para o garçom que foge do vento?
Domingo frio como hoje (15/08) me lembra tantos outros. Sentimento forte me toma de assalto quando sinto o vento gelado no rosto e lembranças nítidas com odores e paisagens surgem na minha frente. Saudade boa. Uma volta pelo bairro, na caça de um inofensivo baguete para tomar com chá mate e manteiga, é o suficiente para algumas ruas da cidade, de tantos anos atrás, voltarem à minha memória. A Avenida Brigadeiro Faria Lima, algumas ruas do bairro do Bexiga, a Avenida Angélica. Destes endereços, as imagens nostálgicas são noturnas; o perfume das árvores é intenso, o perfume das flores é inebriante e o perfume das mulheres é clássico. Uma aura sofisticada e elegante toma conta da noite fria.
A mais antiga destas reminiscências é da Avenida Faria Lima, mais especificamente a sala de cinema chamada “Rock Show”, numa galeria perto do Shopping Iguatemi (circa 1983). Como o nome diz, vídeos inéditos de bandas de rock. Eu pegava uma sessão de domingo às 19 horas, após ter almoçado e passado o domingo na casa dos meus avós maternos. Fugia da família e enfrentava a friaca sozinho. Antes e depois das sessões, passeava por ali no Jardim Paulistano e me sentia cosmopolita naquela avenidona larga, sozinho, com pouco menos de 15 anos de idade, céu azul escuro, vento gélido. Poucas quadras ao lado, o Esporte Clube Pinheiros, mais outras quadras, a Marginal Pinheiros e a visão do Jockey Clube. Voltava para casa com a linha de ônibus elétrico (quase jardineira) Belém-Pinheiros.
Dez anos mais tarde, a recordação de noite de domingo fria envolve a rua Santo Antônio no bairro do Bexiga. Ali, no bar Amigo Gianotti (ou bar do Magrão ou bar das Fogazzas) era o ponto de encontro com uma moça, um affair, no inverno de 94. O domingo virava cenário para o clima de despedida sempre forte, pois nunca sabíamos o que seria de nós dois no meio da semana. Os planos e promessas da quinta, da sexta e do sábado, eram censurados no passeio a pé pelo Bexiga no domingo. Melancolia que deixava a noite mais bonita. Contraditório ou não, o que me enchia de prazer (o vento frio, a véspera da segunda e o papo de despedida) dificilmente faria outra pessoa feliz. Agarrado com ela, fazíamos o caminho a pé dali do bar até a fronteira da rua Augusta com a rua Martins Fontes. Um táxi nos deixava em alguma esquina.
Nunca soube exatamente onde ela morava, afinal não durou nem o inverno inteiro. Ficávamos namorando e nos despedindo para sempre (ou até a semana que vem) na Avenida Angélica. Parecia uma via fantasma nos domingos gelados. E, dentro de seus apartamentos, os moradores pareciam entoar um mantra para nós fantasmas: "voltem para casa! Amanhã é segunda!". Descia até a estação Marechal Deodoro do metrô e voltava para casa derretido, apesar do frio.
Não somente endereços famosos e centrais de São Paulo me enchem de nostalgia, mas as ruas e avenidas de bairros também. O que se repete nos dois lugares sempre é o amor ou a música.
Finalzinho da década de 80 ficava namorando com a minha mulher na Avenida Oratório enquanto perdia vários ônibus para vir embora. Nos domingos gelados tudo parecia mais consistente: o amor, os planos, os beijos, a lua e a vontade de ficar. Já faz vinte anos, mas parece ontem á noite. Sinto até o perfume do cabelo dela. Hoje, penso e organizo a semana da mesma maneira que naqueles domingos: com ela ao meu lado ou em meu pensamento. Qualquer dia a levarei naquele ponto de ônibus para ver o que o tempo fez conosco.
No que se refere à música, pertinho dos anos 2000, na faculdade de filosofia, conheci uns amigos que tocavam e, por uma série de motivos (casamento, horário, trabalho), eu só conseguia assisti-los aos domingos. Tocavam sempre na Avenida Anhaia Melo. Lembro muito bem do passeio incomum. Saía de casa num horário que os vizinhos estavam chegando do almoço com as famílias e numa temperatura que gostariam mais é que o Faustão e o Silvio Santos os esquentassem na poltrona. Só pensavam na musiquinha do Fantástico e eu no set list psicodélico da banda. Aproveitava como se fosse o último dia da minha vida e voltava de carona na caçamba de uma picape, bêbado e dividindo espaço com as peças da bateria. Vento forte e gelado no meu rosto. Um elixir para agüentar a semana.
And last, but not least, em 2004, existia um projeto bem legal no Avenida Club chamado “Dois em um”. Duas bandas tocavam no domingo à noite por lá. Era o show do Cachorro Grande. Eu levo a diversão a sério e acho o prazer um sentimento nobre. De casa até Pinheiros prestei muita atenção na noite de São Paulo fria e cinza. Ninguém parecia se divertir nas ruas. Apesar de não aparentar, eu aproveitava cada feixe de luz, cada baforada de vento frio. Pela vitrine da FNAC (ao lado do Avenida Club) eu via casais se arrastando pela loja, como num passeio forçado; via clientes comprando de presentes de última hora na obrigação de agradar.Após o show, a nossa patota subiu pelas ruas da Vila Madalena até o Bar das Empanadas. Ficamos nas mesas do lado de fora para não esquecermos que era frio e domingo. Quem tem pressa?
Show da banda Zé Maria no Avenida Club (2 em 1) em 22/05/2005 - Foto minha
Domingo lindo de sol, 22 de agosto. As circunstâncias do dia exigiam o preparo do almoço com rapidez. Não queria encarar aquelas gororobas de macarrão, fazer sanduíches de ocasião ou pedir comida delivery. É gostoso cozinhar ouvindo música, bebendo e conversando, mesmo que seja rápido. E precisava ser saboroso. Matutei o que poderia ser ligeiro e fui às compras.
Comprei um pacote de penne, pois massas são rápidas no preparo. Não queria molho de tomate e pensei no branco, apesar de achá-lo meio insosso. Lembrei de colocar alguma carne desfiada para levantar a moral e o sabor dele: peito de peru defumado e ralado. Ervilhas dariam outro toque de sabor e cor.
Mesmo assim estava com receio de não me satisfazer com o molho branco - por puro preconceito – e garanti um feijão branco na panela para preparar uma salada consistente.
Eu e minha mulher brincamos de nomear pratos e este se chamou molho “branquelo defumado”, inspirado no molho tradicional à “parisiense”. O intuito é o “anti-marketing”, como no caso da feijoada light (sic) que apelidamos de “feijoada insossa”. Nós deixamos em paz a salada de feijão branco com salame e não a apelidamos.
Penne ao molho branquelo defumado
Ingredientes:
½ pacote de penne
Óleo de girassol (ou azeite, ou manteiga)
2 dentes de alho bem picados
1 cebola pequena bem picada
1 tirinha de pimentão bem picado
¼ de maço de salsinha bem picada
1 folha de louro
½ dúzia de azeitonas pretas bem picadas
200g de peito de peru defumado ralado
1 colher (sopa) de maisena
2 xícaras (chá) de leite
2 colheres (sopa) de queijo parmesão ralado
1 lata de ervilhas
1 lata de creme de leite
150g de queijo provolone ralado
Preparo:
- Escolha uma música e uma bebida (neste dia ouvia Massive Attack e bebia um vinho argentino de uvas shiraz / malbec).
- Ferva 4 litros de água numa panela grande. Acrescente 250g de penne (metade de um pacote). Eu nunca uso óleo para cozinhar massas.
- Como ele irá ao forno em seguida, o cuidado com o tempo de cozimento é fundamental. Precisará ficar levemente mais duro que al dente, caso a massa não seja grano duro. Se a marca for Barilla ou alguma marca nacional do tipo grano duro é só seguir as instruções da embalagem para ficar al dente e ele segurará a onda no forno.
- Pré aqueça o forno (180°) enquanto prepara o molho.
- Aqueça o óleo (ou azeite, ou manteiga) e jogue a cebola, o alho, o pimentão, a salsinha e a folha de louro – nesta ordem, para respeitar o dourado de cada um deles e não queimar. Com o refogado bronzeado, é hora da azeitona preta. Esta é a base de temperos que dará todo o sabor.
- Em seguida o peito de peru defumado. Ele deve ser comprado em pedaço para que passe pelo ralador manual. O refogado estará quente o suficiente para fritá-lo. É só misturar como se estivesse fritando carne moída.
- Logo após dissolva uma colher de maisena em um dos copos de leite e jogue na panela. Mexa sempre. Adicione o outro copo de leite e o queijo parmesão ralado. Não pare de mexer para engrossar o molho. Quando começar a borbulhar, jogue as ervilhas, o creme de leite e apague o fogo.
- Misture muito bem com o fogo apagado.
- Não usei noz moscada e nem pimenta do reino, mas com moderação, ficaria bom também. Cuidado com o sal. O peito de peru, o provolone e o parmesão já são salgados.
- Numa travessa grande ajeite o penne, jogue todo o conteúdo da panela aos poucos e misture com calma para não quebrar a massa. Rale o provolone por cima para gratinar e...forno na boneca! Espere o provolone derreter e está pronto. É rápido.
- Serve 4 pessoas, sossegado. Uma salada de folhas mix (agrião, alface americana e rúcula) combina bem. Eu fiz uma salada de feijão branco com salame.
Salada de feijão branco com salame
Ingredientes:
- 250g de feijão branco cozido
- 150 g de salame bem picado
- 2 tomates firmes bem picados
- 1 cebola bem picada
- ½ maço de salsinha bem picado
- ½ dúzia de azeitonas pretas bem picadas
- 3 dentes de alho picados e fritos no azeite
- 1 tira de pimentão bem picada
Modo de preparo:
Misture todos os ingredientes e tempere com sal, azeite e vinagre. Aqueles molhos italianos prontos também devem pegar bem aqui, mas eu não usei.
Trilha sonora:
Coloco 3 músicas do Massive Attack remixadas. Fazem parte da caixa com 11 CDs chamada "Singles 90/98". Comprei em 99 quando o dólar era um real. Cem dólares muito bem gastos. A embalagem dela é térmica, ou seja, no verão tem uma cor e no inverno outra. Se estiver escura e alguém colocar a mão, o contorno dos dedos fica marcado. Doidona e linda. Escolhi o remix de "Risingson" do álbum Mezzanine, de "Inertia Creeps" do mesmo álbum e de "Karmacoma", do álbum Protection e remixada pelo Portishead.
O sol da manhã nem tinha esquentado ainda e já tinha gente reclamando da segunda feira. Não gosto de falar mal dos dias da semana. Nem apelidá-los ou relacioná-los com sentimentos ruins. Este espaço, aqui, leva o nome de um dia nada popular. O ódio aos domingos só não é maior que o ódio às segundas. Mas hoje, segundona típica, feliz estou. Descansado e satisfeito também estou. Uma flanada pelo centrão me deixou assim sorrindo à toa.
(@escrevi o texto na segunda, apreciei na terça, questionei na quarta e postei na quinta@)
Sábado foi o dia do passeio. Adoro passear no Centro de São Paulo. Saímos logo ao meio dia com destino à Galeria do Rock. Rever preços de discos de vinil importados, se inspirar para presentear algumas pessoas, comprar incensos, ver o desfile de cabelos e roupas, lembrar de um tempo que aquela galeria não estava na moda.
(@descobri uma loja de incensos de massala que são vendidos por peso. @descobri que os andares onde as escadas rolantes não chegam são mais vazios@)
Sempre frequentei a galeria por causa das lojas “Baratos Afins” e “Devil Discos”. Já nos 80´s, elas eram gravadoras e distribuidoras também. Além de inúmeros discos de vinil comprei lançamentos de bandas que eles mesmos gravaram, como: Smack, Fellini, Mercenárias, Defalla, Voluntários da Pátria, Bocatto, as coletâneas “Não São Paulo” e “São Power”.
(@vi um vinil duplo do The Black Keys por 175 dinheiros! @assalto! @será que ninguém conhece a loja on-line da amazon?@)
O sub-solo sempre foi da música negra e acessórios afins. O térreo reservado às roupas, tênis e mais acessórios. Os últimos andares ao pessoal do silk screen. De um tempo pra cá lojas relacionadas à cultura rocker (headbangers, góticos, punks, coloridos, emos, rockabillies, etc) estão invadindo todos os andares. Até os botecos “pé sujo” frequentados pelos verdadeiros punks não estão mais lá. Uma pena. Visitei mais duas galerias que, pelo menos, continuam mais resistentes à tradição. A Galeria Presidente, também na rua 24 de maio, e a Galeria Nova Barão na rua Barão de Itapetininga.
(@numa loja, vi o primeiro álbum do Chemical Brothers, "Exit planet dust", em vinil duplo, por 80 dinheiros.@um pouco mais justo@)
A Presidente tem um pique mais indie e de música eletrônica. Assim como umas lojas inspiradas na cultura jamaicana e outras de equipamentos de discotecagem. Freqüento mesmo a “Sensorial Discos” e a “Velvet CDs”. O Carlos da Sensorial toca no Continental Combo, banda com pitadas psicodélicas, e tocava no Momento 68, quase a mesma formação, mas com uma levada mais mod. Até hoje tenho uma fita K7 do álbum “Tecnologia" do Momento 68. Diria que foi na loja dele que comecei a desejar lançamentos importados de rock de garagem em vinil.
(@na vitrine da Sensorial está exposto o vinil fresquinho dos "Haxixins". @psicodelia sixty da melhor qualidade, direto da zona leste de São Paulo@)
A Nova Barão abriga lojas que vendem discos de vinil. De nome mesmo, só lembro da “Big Papa Records”, mas passo em todas para olhar promoções e algumas raridades. Lembro da Big Papa porque fazem bazares de discos de vinil pela cidade (Serralheria, Tapas, CCPC) e patrocinam um happy hour bem legal no Alberta#3.
(@na porta fechada da Big Papa Records tinha um aviso dizendo onde eles almoçavam a feijuca cheirosa@)
Pingamos de bar em bar, de restaurante em restaurante. Seja para comer, para beber ou só para usarmos um banheiro decente. Começamos bem e no Copan: restaurante mexicano chamado “El Coyote”. Pequeno, agradável e - muito importante – servem a cerveja Sol mexicana. No sábado ensolarado e cheio de jalapeños, tomar uma destas no gargalo e com limãozinho dentro da garrafa é um elixir.
(@o El Coyote não tem banheiro próprio.@usa-se um banheiro coletivo do Edifício Copan@)
Do Copan para a Praça do Paissandu e um lugar clássico de São Paulo, o “Ponto Chic”. Mas foi só para tomar cerveja mesmo. E para curtir um ar condicionado. Nada de sanduíches famosos. Os pratos do dia fumegando nas mesas ao lado e nós dois só na Norteña. Aos sábados, o Ponto Chic acaba recebendo os turistas da Galeria do Rock, eu e minha mulher, neste dia inclusive. Famílias de três gerações com camisetas do Led Zeppelin, Iron Maiden e White Stripes – respectivamente – traçando feijoadas, filés enormes e o Bauru oficial.
(@o maitre do Ponto chic sentou numa das mesas vazias e começou a almoçar.@porém, antes da primeira garfada, perguntou a todos os clientes se queriam acompanhá-lo@)
Já perto do final da tarde procuramos um boteco para outras cervejas e para visualizar o pôr do sol. Paramos no Largo da Memória, bem próximo à estação Anhangabaú do metrô. O bar toca forrós de churrascaria no aparelho de DVD. O público é seleto e variado. Nigerianos, famílias que moram por perto com pais alcoólatras, trabalhadores, garis varrendo e dançando, prostitutas de folga. Divertido e etílico o suficiente para fazer um esquenta daqueles, já que a próxima parada era esperada e programada desde cedo. Mas para ir preparando o paladar para a Guinness que íamos tomar em seguida, paramos em outro bote para uma Original, pois lá no Largo da Memória só tinha Skol e Brahma. Achamos outro bote ali no começo da Consolação. Não tinha ninguém. Só os donos preparando algo, ou para abrir ou para fechar o bar.
(@logo os músicos de samba começaram a chegar @os garçons contaram estórias de badalação e celebridades do vizinho "Royal"@desconfiaram que a gente não ia ficar@)
Então chegamos ao "Alberta#3" para o happy hour chamado Rancho Albertino. Acontece todo sábado das seis da tarde até as 10 da noite. Organizado por Alessandro Psycho eFel Milward, só se toca vinil numa pick-up Numark portátil e charmosa. Os dois ficam logo na entrada recebendo quem chega e discotecando ali mesmo. Percebe-se a predominância do rock e da música negra nas bolachas. O site da festa avisa: “discos dedixieland, jazz,big bands, rhythm & blues, early soul,country,folk,blues,temas instrumentais,surf,boogaloo,exótica,hot rod,hillbilly,rockabilly, early rock'n'roll,cancioneirolatino-americano (mambo, salsa,rumba,chicha, etc) ebrasileiro,música cajuneeuropeia,batidasafricanase tantos outros ritmos”. Bem divertido. E eles incentivam que todos tragam seus LPs.
(@ofereci ao Psycho meu Soledad Brothers em vinil chamado "The Hardest Walk". @ele me disse que era uma boa pedida para tocar@)
O lugar é um clube com cara de pub, ou melhor, com jeitão de bares de saguão de hotel, manja? Sofás de couro, luz baixa e nenhum moleque. O nome é inspirado nas músicas “Alberta # 1” e “Alberta # 2” do Bob Dylan. De terça a sábado, o happy hour tem entrada gratuita e servem chopp Guinness, Colorado e Braumeister.
(@não provei nada para comer.@precisávamos guardar nosso apetite para a próxima aventura, o Bar do Estadão@)
O Psycho (Alessandro) é conhecido da noite paulistana pelo clube Inferno e pela banda de punk-blues Cobras Malditas, que é vocalista. Lembro dele discotecando pedradas de garage-soul na Casa Belfiore, em 2003, numa tarde de sábado deliciosa, antes do show dos Thee Butcher´s Orchestra. Tocaram apertados bem no canto. Houve ainda bazar de roupas e discos na festa. Em outra ocasião, assisti um show dos Cobras Malditas por lá. Até recomendei o happy hour do Alberta # 3 a um amigo que, assim como eu, nos sentimos órfãos da Casa Belfiore, que também era um ótimo lugar para se tomar Guinness.
(@não é só em pubs que tocam U2 e rock farofa, além das inúmeras TVs passando esporte, que se pode desfrutar uma Guinness@)
- Quatro músicas para ouvir, abaixo: Mercenárias com "Além acima", Bob Dylan com "Alberta#1", Cobras Malditas com "São Paulo shakedown" e Momento 68 com "Flamejantes 2".
Antes que eu me pergunte de onde veio a idéia deste texto, respondo sozinho para economizar pontos de interrogação: do nada. Ou melhor, acho que a idéia tinha um destino, um alvo, mas se perdeu no caminho e me acertou. Grudou e não saiu mais. Tava ventando bastante. Deve ter sido isso. Vamos falar das tais subtrações então.
Eu não tive grandes prejuízos nos assaltos dos quais fui vítima. E também não tive muito medo. Mais susto e impotência do que pavor e raiva. Sempre me interessou pensar sobre essa atitude de tomar algo que não é próprio. Insatisfação? Ganância? Maldade? Covardia? Preguiça? Esperteza? Folga? Veja bem: não quero julgar, quero entender. Não tenho raiva. Tenho curiosidade.
1 - Com autorização
Quando me tiraram as amídalas, até que foi divertido. Eu tinha quatro anos. Minha mãe assinou a autorização no hospital e tudo ficou resolvido com bastante sorvete. Nem senti falta.
2 - Com fome
É...os mais velhos roubavam minha “Mirabel” e minha “Ana Maria” na hora do recreio, em algumas fases da primeira série. Minhas estratégias pra diminuir o confisco eram: levar lanches discretos e pequenos, não dedurá-los para ninguém e sempre tirar um pouco de sarro da situação, algo como: ”estão com fome, hein?”, assim, me davam um pedaço do que afanavam. Como eu era desprovido do sentimento de posse e não dava trabalho para os saqueadores, logo me deixaram em paz.
3 – No vizinho
Minha mãe acorda assustada. Só bem mais tarde, quando não tinha mais pra quem contar, solta para mim que haviam entrado na casa dos vizinhos chineses. Me disse até que eles passaram na frente da nossa casa para encará-la. Ou ela seria a próxima vítima, ou queriam intimidá-la por algum motivo. Será que minha mãe só os reconheceu pelo cheiro de naftalina que a casa chinesa carimbou nos invasores?
4 - Ensaios
Dos dez até os quinze anos, nada demais aconteceu. Nessa época eu nem cheguei a ver nenhum instrumento de convencimento mais eficaz (faca, revólver, estilete, canivete). Se bem que eu meus amigos usávamos um figurino meio punk e isso não atrai quem quer relógios ou tênis caros. Os possíveis assaltantes queriam se autoafirmar no bairro e na região, portanto só ensaiavam ou faziam pose de bandidos. Só apavorar mesmo. E encenavam apenas quando estavam em bando. Sozinhos, eram garotos mal humorados. Onde e quando: saídas de baile de carnaval, quermesses, passeios pela madrugada, saídas de festas, etc. O “modus operandi” mudava quando havia alguma moça conosco. Sempre um dos pavões abria todo o seu enfeite.
5 – Ruas perigosas
Já na idade de chegar em casa bem tarde, frequentei muito o Carbono 14 (Bixiga), o Centro Cultural SP (Vergueiro) e o Espaço Mambembe (Paraíso). Nestes bairros, andávamos mais espertos e preocupados. Invariavelmente pegávamos algum ônibus negreiro na Praça da Sé. E lá, em algumas ocasiões, os moleques moradores de rua encaravam a gente, mostravam armas feitas à mão e levavam cigarros, garrafas de bebida e o dinheiro do ônibus que tinha sobrado. Na segunda feira virava estória – um pouco distorcida – para contar aos amigos do trabalho. Um “quê” de aventura.
6 – A armação perseguida
Sempre gostei de brechós. Assim que comecei a trabalhar, freqüentava um brechó em Pinheiros, Vila Madalena, que se chamava ‘Universo em Desfile”. As sócias tocavam na banda pós punk “Mercenárias”. Meio caro para o meu bolso, mas eu sempre comprei umas armações de óculos lá. Eram aquelas de acrílico cinza e preta, típicas de vovô e vovó, bem vintage mesmo. A vantagem é que já vinham com a lente verde, como eu queria. E fiz a conta certa, eu tive quatro destas. Não era uma coleção: é que me roubavam mesmo. Uma em um acampamento, outra num curso, outra no Espaço Retrô. Talvez o verbo certo seja “afanar”, porque eu nunca soube quem foram os gatunos(as). E a quarta armação? Ah...essa foi na Praça da Sé. Quatro moradores de rua chapados de cola e crack pediram dinheiro e perceberam que tinha pouca gente na rua. Logo me cercaram: “Me dá a lupa, branquelo!”
7 – Mochila bagunçada
Eu e minha mulher chegávamos de Barequeçaba, uma praia em São Sebastião. Feriado prolongado. Do metrô até em casa, na esquina mais escura, um homenzinho nervoso e bêbado aponta um revólver velho e enferrujado para mim. Cansados, sem grana, queimados de sol, só entregamos a mochila cheia de roupas molhadas, chinelos e toda sorte de roupas sujas de areia da Praia de Guaecá (Barequeçaba é feia, tem areia cinza e batida. Guaecá tem areia fina e fofa). Ele pediu desculpas, disse que saiu de casa no Nordeste e não conseguia voltar, não arrumava emprego, etc, etc. Só não fomos beber umas com ele porque estávamos cansados e sem dinheiro.
8 - O posto bancário
Eu era office-boy de uma gráfica importante do Cambuci. Tudo bem que o bairro tinha mais de uma dúzia delas, e todas importantes. Tão grande e famosa que tinha um posto bancário dentro dela. Meu gerente me pediu para sacar um dinheiro. Hoje, sei lá, o equivalente a uns mil reais. Queria ver o sol, as garotas, os carros e fui sacar na agência do Largo do Cambuci. A dupla de assaltantes também queria me ver. “Passa logo! Passa logo, boy!”. Aquele revólver não estava enferrujado e os caras não estavam bêbados. Como explicar para o meu chefe que eu queria liberdade no lugar do posto bancário? Não sei como me entendeu e não contabilizou o prejuízo.
9 – Se for assaltado, não grite
O de sempre, né? Andar em lugares perigosos de madrugada, se portar como se estivesse num cenário de “Ginger e Fred”, algum malandrinho vem pra lembrar que aquilo é a Praça da Sé. Já não morava com a minha mãe há cinco anos. Morava com um casal de amigos e a moça nunca pareceu que reagiria a um assalto. Ela não lutou. Ela gritou muito, muito mesmo. Só não tomamos um “pipoco” porque a arma devia ser de brinquedo. Não entendi nada e não desembolsei nada.
10 – Medroso enrustido
Outro amigo que eu também não imaginava tal reação. Faculdade de Filosofia, mais de dez anos atrás, para economizar o dinheiro do ônibus eu e ele fomos a pé até a estação Bresser do metrô. Antes da rampa tem um jardim muito escuro por causa das árvores. Apareceu um nóia com cara de policial. A arma dele não era de brinquedo e sim uma pistola automática. “Vamu, vamu! A grana!”. Meu amigo dizia que não queria morrer, que fazia qualquer coisa. Eu fiquei com mais medo dele do que do segurança-policial-nóia-assaltante. Com a arma na cara do meu amigo, ele disse: “Queria ser um cara foda agora só pra você ficar com medo de verdade! Some da minha frente, cagão!”. Ele ficou muito puto de só levar bilhetes de metrô e mixaria em dinheiro.
11 – Golpe do seguro
Quando os primeiro gravadores de CD´s ficaram mais acessíveis, eu continuei sem tê-los. Mas um amigo da faculdade comprou. Eu alugava CD´s (sim, alugava! O mundo muda muito rápido) e levava na casa dele para copiá-los. Sábado bem quente, eu na Rua Coelho Lisboa no Tatuapé, endereço da locadora e loja de CD´s, entram dois caras e anunciam o assalto. O dono da loja subiu, trancou a porta e começou a gritar. Olhávamos para os ladrões com cara de “sobe e mata esse cara!”. Eu até ofereci ajuda para carregar os CD´s e mostrei onde tinha os mais caros. De tanta raiva. Mas logo descobri que, se eles não mataram o dono da loja nem os clientes, algo estava errado. A mulher do amigo que gravava CD´s, minha amiga também, era bancária e sabia que ele tinha um seguro bem gordo lá no banco.
12 – Golpe do seguro 2
Eu e minha mulher, com preguiça de guardar o carro no estacionamento, deixamos o “Uninho” na porta de casa pela madrugada toda. Sexta para sábado. Acordamos e só tinha a marca de óleo. Acionado o seguro, recebemos uma ligação de domingo para segunda, umas três da matina, era a polícia, um delegado bem educado e comunicativo. O carro estava na Vila Rica, zona leste de São Paulo. Só roubaram o estepe. Na mesma época, o noticiário citou algumas seguradoras que repassavam premiações a policiais que encontravam carros roubados. Não posso provar nada. Nem tampouco recuperar o estepe.
Abaixo, para ouvir, a música “Banditismo por uma questão de classe” de Chico Science & Nação Zumbi em duas versões. Uma, original do álbum “Da lama ao caos”, e outra remixada por DJ Cutz do álbum “CSNZ”, lançado após a morte de Chico Science, e possui remixes, versões e gravações ao vivo. Coloco também a música de uma banda que fez muito a minha cabeça e com letra que se encaixa no tema: "Racist friend" dos Specials.
Não assisto noticiários policiais, adorava o “Notícias Populares”, nunca reagi a nenhum assalto, nunca fiquei com raiva dos bandidos e concordo com o Chico Science:
“E quem era inocente hoje já virou bandido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fudido
Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade
Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade
Banditismo por uma questão de classe!”
Então está combinado: eu volto a pé para casa. Vinte e cinco minutos, ou um pouco mais, na sola. Me faz esquecer, me faz ficar longe. Só lembro o que convém e só fico perto do que eu quero. Troco o odor de gasolina e óleo diesel pelo cheiro de lanche na chapa que invade o passeio. Em alguns bares é a fumaça do café que perfuma a calçada e faz desenhos na tarde em degradê. Na janela escondida do segundo andar alguém fuma maconha para deixar tudo arredondado e colorido.
No ziguezague das ruas do meu bairro, travessa sim, travessa não, o sol me acerta em cheio na testa. Pôr do sol laranja forte. Adoro ser seu alvo. Entro à esquerda para ficar cego com o laranja dele; entro à direita e uma sombra fria e cheirosa me acalma, me devolve a visão. Mas logo sinto falta da cor. E na primeira travessa ele já inunda a rua, as cores das casas saltam e os reflexos ficam fortes.
O prédio da Avenida Paulista, lá longe, fica todo ruborizado nos últimos andares. O Pico do Jaraguá parece incendiar. Os prédios novos e intrusos dos bairros recém desfigurados aproveitam o feixe de luz para posar. A dança das árvores, causada pelo vento, monta um efeito estroboscópico, um efeito lisérgico, graças às suas folhas e galhos que alternam freqüência de luz e sombra.
Encontro com garçons e cozinheiros fumando nas portas traseiras dos restaurantes. Trabalhadores de fábrica andam apressados pra chegar em casa e desviam do meu andar malemolente. Se amontoam nos ônibus mal humorados. Moradores de cortiços passeiam sorrindo; moradores de rua sabem que são livres; moradores de condomínios de luxo reclamam de tudo. Fauna completa a transitar no meu caminho.
No alto da colina, prestes a chegar em casa, olho para trás e vejo uma ladeira; olho para frente e vejo outra inclinação, mas não tão íngreme. Estou no alto. Me sinto forte. Ao avistar a Zona Norte da cidade percebo alguns matizes de verde na Serra. Lembro de um outro tempo no mesmo lugar, sem tantas construções obstruindo meus sentidos. Agora, a descida é mais tranqüila, quase me deixo levar. Agora, as lembranças são boas, quase me deixo enganar.
Alguns degraus e estaciono na sala. Água, corpo estirado, fumaça, lembrança de algum solo de Miles Davis e quem sopra no meu ouvido mesmo é Muddy Waters: “Have you ever been walking, walking down that old lonesome road?” (Coloco 3 músicas que me inspiram em qualquer momento, mas aqui tem um sabor especial. Não só pelo tema, mas também ao clima que remetem. Nada difícil ouví-las enquanto caminho. 1 - O blues garageiro do português "Legendary Tiger Man" em dueto com a atriz Maria de Medeiros na cover sensacional de "These boots are made for walking", clássico de Lee Hazlewood de 1966 (mais conhecida na voz de Nancy Sinatra); 2 - Muddy Waters solta todo o seu lamento em "Lonesome Road Blues" de 1960, canção de Big Bill Broonzy; 3 - e com Miles Davis e Cannonball Adderley, um standard de 1958 chamado "One for Daddy-O". Não posso deixar de citar um blog cheio de fotos que me inspiraram muito também: http://ceudesaopaulo.wordpress.com/ )