domingo, 2 de novembro de 2008

Um dia qualquer: terça feira




Nunca desprezo nenhum dia. Eles podem se transformar completamente e se agitar de forma frenética ou cair em malemolência profunda. Se essas mudanças vão me agradar ou não é outra estória. Mas, o hábito de proferir frases contra alguns dias da semana não se apossou de mim. Pelo contrário, sempre os elogio. O nome deste blog faz referência direta ao dia da semana que talvez seja um dos mais odiados – não por mim. Só deve perder para a segunda-feira.

Durante muito tempo, não tive dia certo para trabalhar ou folgar. Finais de semana e feriados trabalhando intercalados com dias úteis bundando. Para mim, se tornavam mais úteis ainda. Aprendi a enxergar os dias de outra maneira. Sem a relação de obrigação versus ócio: para mim é tudo misturado. Não existe dia certo para isso ou dia certo para aquilo. Sempre citei o ócio criativo aqui no blog por acreditar nessa estratégia. Isso não quer dizer que eu não goste de trabalhar. Intercalar, de forma produtiva, folga e trabalho parece ser a grande sacada.

E, naquela terça-feira (23/09), um dia qualquer começava. Friozinho, banho quente, rádio Cultura AM para ouvir música e notícia, cheiro de café incensando a casa, o gato mia para pedir o desjejum. Aproveitei que ainda era cedo e baixei os 3 discos do trio Kassin, Domenico e Moreno.

A novidade nos fones de ouvido me obrigou a ir à pé até o trabalho. Vinte e cinco minutos para ir conhecendo um pouco desses três álbuns. Digo que o primeiro contato com eles foi uma ótima companhia: não estorvaram meu café com leite e a canoa (pão com manteiga na chapa); se comportaram direitinho quando passei pelo meio da feira, pois até o volume diminuiu e os feirantes conseguiram berrar no ritmo da música; aproveitaram e reforçaram o colorido do segundo dia de primavera e, quando cheguei ao meu posto de trabalho, fiquei triste de desligá-los para bater o ponto.

Após duas horas de paulada no atendimento - telefone, fax, simulações e assinatura de contratos - fiquei sabendo que iria ao centro da cidade deixar certos devedores mais conhecidos em alguns cartórios.

Os cartórios de notas se concentram nas imediações da Praça da Sé. Meu roteiro foi: Rangel Pestana, Pátio do Colégio, 15 de Novembro, Quintino bocaiúva, Brig. Luis Antônio, Pça. João Mendes e outras por ali. E foi nessas ruas que tive o segundo contato com os álbuns do trio, baixados pela manhã. Foi demais a sintonia da música com o centro velho de São Paulo. Diria que ter a idéia de fazer o download desses caras foi meio profético, mesmo que eu não tenha percebido.

O normal para mim sempre foi ouvir Sonic Youth, Velvet Underground ou Jesus & The Mary Chain para combinar com o centro velho de São Paulo. Nunca imaginei que três cariocas podiam fazer essa trilha. Podiam ser cariocas e fazer rock? Sim, sim. Mas não é o caso. Eles fazem MPB eletrônica, com ecos de Bossa Nova, João Donato, Marcos Valle e tecladinhos vintage. No máximo um rock ingênuo.

Eu estava lá, na janela do ônibus, vendo gente com placas de “compro ouro” na mão, malandros encostados nas paredes, gente engravatada com ternos baratos, moleques de rua, office-boys, e a música combinava direitinho. Meu olhar até conseguia editar os andares das pessoas e os movimentos de mãos de quem conversava. Às vezes em slow motion, às vezes mais corrido. Num momento, olhei tudo cinza quando a música ficou um pouco mais triste. Eu encontrava personagens para as canções que ouvia no fone de ouvido.

Andando naqueles calçadões, ouvindo a gritaria dos camelôs, olhando aquela arquitetura imponente, me senti em casa. Tão em casa, que quase fui atropelado por 2 motos. A música me deixou meio chapado, sem querer. Fiquei com um sorriso carimbado no rosto. Achava tudo lindo e prazeiroso. Devo ter dado bandeira.

Era impossível não se render à poesia desses caras. Do álbum de Kassin+2, “Futurismo”, saiu uma dessa:

“Quando você saía

A casa entristecia

As torneiras choravam

As portas esperando

Você voltar

Pra alegrar

O seu lugar”

(O seu lugar)

Ou do álbum de Moreno + 2, “Máquina de fazer música”:

“Eu não gosto tanto de você assim

Mas sempre que você se afasta de mim

Eu confesso que já não consigo te esquecer, menina”

(Arrivederci)

E do disco do Domenico + 2,”Sincerely hot”:

“Cedo ou tarde

De manhã

Sem destino

O abismo é total

Sem parar

Vejo você”

(Solar)

Às 16 horas eu ainda não havia almoçado. O bairro da Liberdade é muito perto da Praça da Sé. Corri para o “Karê Ya”, restaurante coreano/chinês/japonês especializado em curry. Karê é como o japonês pronuncia curry. A comida é hot hot hot. Não dá para comer num dia quente.

Tracei um “bibimpá”, que leva arroz crocante com gergelim, o karê de carne e legumes, acelga na conserva bem apimentada e um molho agridoce. O prato é servido numa panela de ferro e uma base de madeira. Sentindo o gosto da pimenta e da cerveja na boca, sorri ao constatar que a simples terça feira me trouxe tanta diversão.