quarta-feira, 26 de março de 2008

Índia vespertina

(Domingo de Páscoa)


Eu aproveito os feriados santos para fazer mea culpa com a família. Páscoa é perfeita. Sempre foi. A morte, a ressurreição, como uma despedida dos péssimos exemplos (a ausência) e a promessa de uma nova vida (a presença). Nada como chocolate meio amargo e bacalhau imperial para sair ileso.

Com o tempo, e o preço da culpa subindo no mercado familiar, tive que assumir algumas panelas. Só os presentes finos não encantavam o suficiente. Era justo e prazeroso cozinhar para minha mãe, sobrinhas e irmãs – agregados inclusos. Eu adorava vê-las papeando ao invés de vestirem aventais. A criançada correndo, as mulheres de bochecha vermelha por causa do álcool e os homens discutindo futebol.

Minha única exigência era ouvir Billie Holiday enquanto tirava o sal do peixe e picava os temperos do refogado. Quando tocava “Tenderly” eu colocava a culpa na cebola por deixar algumas lágrimas escorrerem. Sorte a minha nunca ninguém conferir a tábua e descobrir que era salsinha que eu picava nessa hora.

Mas como em todo mercado especulativo, os preços sobem. Minha mãe sentia falta de uma companhia feminina. Não sei se ela queria mais netos ou conhecer que tipo de mulher me agradava. Eu, depois dos 30 anos, sempre aparecia sozinho nessas ocasiões. Não era um vinho verde português que minha mãe queria ver minhas mãos carregando. Definitivamente ela queria uma nora.

Foi somente na loja de chocolates finos, na mesma semana da páscoa, que atentei para a possibilidade de minha mãe achar que eu era gay. Aquilo me deixou meio atordoado. As compras de chocolate foram meio sufocantes. Minha mãe não merecia ter esse tipo de pensamento. Para mim não, mas para ela a homossexualidade era algo terrível. Eu adorava as mulheres, mas não via atalhos de levá-las ao lar sagrado da matrona. Fazia parte do meu mise en scene mantê-las afastada da família.

Enquanto faziam os embrulhos luxuosos nos ovos de páscoa, fui até a porta da loja tomar um ar. Bela decisão para me acalmar. Era uma brisa típica de chuva: cheirosa e nervosa, acompanhada de nuvens cinza. Escolhi uma loja da rede de chocolates que fica bem no centro velho de São Paulo. Praça João Mendes quase esquina com Quintino Bocaiúva. Logo na porta, alguma mulheres ofereciam prazer. Eu sempre reparei nelas trabalhando à tarde nas cidades, seja em Campinas, São Paulo ou Rio de Janeiro, próximas aos estabelecimentos da Justiça, mas algumas novidades saltavam aos olhos. A maioria agora era de mulheres mais novas.

Uma delas era muito bonita, como uma índia da floresta. Seus cabelos lisos e negros, pele bem morena e olhos levemente puxados me enfeitiçaram. Queria saber seus segredos ali na rua mesmo, no sol forte, entre os assovios de vagabundos e pedreiros de folga. Ela era alegre, abordava todos sem distinção. As colegas só abordavam os homens mais simples. Quando criei coragem para chegar perto, a atendente da loja me chamou dizendo que os embrulhos estavam prontos. Um coitus interruptus.

Desencorajado, fui buscar os pacotes. Quando voltei para a brisa fresca e a penetrante visão da índia de mini saia, as sacolas e laços chamaram a atenção dos olhos negros da belle de jour. “Gaste aqui um dinheirinho comigo também, galego!”. Arregalei o olho e disse sim, com as sacolas na mão. Sorrindo – ao contrário de suas colegas - deixou tudo muito claro sobre preços, local e detalhes desconcertantes para clientes especiais. Eu respondi dizendo que pagava o dobro só para conversar e tomar uma cerveja. Ela ficou séria. Disse que não bebia em serviço. “Eu bebo e você toma um suco ou um café”, argumentei. Olhando para a catedral da Sé ela me disse que não tinha sede e nem necessidade de conversar. Percebi que sua vaidade foi ferida e consertei rapidamente a grosseria dizendo que ela era linda, que não escolheria outra senão ela, mas que eu estava sem condições de praticar o ato. “Sua companhia na conversa terá o mesmo efeito” disse sem saber se ela entenderia.

Ela aceitou muito a contragosto. Receosa e desconfiada de qualquer ameaça ou risco, escolheu a espelunca para bebermos. O bar era sujo, lotado de frequentadores típicos do centro velho e música muito alta na jukebox. Sua opinião a meu respeito devia ser muito ruim. Minha curiosidade não se importava com isso, só queria saber como aquela mulher linda tinha chegado ali, na Praça da Sé para se prostituir. Demorou até convencê-la que eu não era polícia, maníaco sexual ou paranóico. Mas depois disso se soltou.

Sua rota e paradeiro era a Espanha. Queria se prostituir lá, como tantas outras da sua cidade, no interior de Goiás. Voltavam ricas e algumas casadas com estrangeiros. Mas seu agenciador disse que, ultimamente, os vistos eram negados, havia mais rigor para entrar na Europa. Ele sugeriu que esperasse a poeira baixar e ficasse em São Paulo por um tempo. Garota do interior, com certa ingenuidade, não sabia o que a esperava na metrópole. Disse-me que nasceu bem, em família que não passava por dificuldades, mas que ela gostava muito de sexo e seu pai a expulsou de casa quando fez um aborto escondido aos quinze anos. Ele descobriu e não a perdoou. Talvez até perdoasse a ninfomania, mas não o crime ao feto de 2 meses. Hoje, com 22 anos, havia completado poucos meses na nova profissão.

Contou muita coisa. Se soltou mesmo. Não me chocava aquilo tudo. Ela imprimia um ar trágico que tirava o lado realista do fato. Uma dúvida precisava ser esclarecida: porque ela trabalhava à tarde? Nenhuma inspiração na atuação de Catherine Deneuve, mas na proteção do “cumpadi”, o agenciador, que garantia os clientes mais tranqüilos e sem confusões que os clientes noturnos costumam causar. Ela virava abóbora às 18 horas.

Por não ter me influenciado por todas aquelas mazelas, ainda sobrou espaço para me inspirar numa idéia mirabolante. “Quanto ela cobraria para passar a Páscoa comigo e com minha família?”. Minha mãe ia passar uma Páscoa mais feliz se eu chegasse acompanhado. A índia não tinha estereótipo de prostituta. Só possuía roupas curtas e lascivas demais no seu armário, mas qualquer banho de loja na Vila Madalena a transformaria numa estudante de teatro ou numa hippie universitária. Fantasia ideal para tornar uma mãe convencida da masculinidade do filho.

Não me deu muito trabalho e topou. Ela criou afeição ao meu lado ouvinte, carente como só ela. Fez o preço e ficou combinado de passarmos a Páscoa juntos. No sábado de aleluia nos encontramos à tarde e fizemos compras. Roupas pra ela, bacalhau no Mercadão, mais chocolates e muita cerveja entre uma loja e outra. Que companhia agradável ela era; me deixava impressionado. Transformava todo aquele compromisso numa festa à fantasia, numa diversão programada. Como virava abóbora às dezoito horas, por causa do “cumpadi”, não ouviu toda a receita da portuguesa do bar ao lado da Rua Augusta. Eu ouvi e me inspirei para cozinhar no dia seguinte.

E assim a índia da Praça da Sé, que virou Bianca para a família, se apresentou como minha namorada. “Moça de poucas palavras” disse minha mãe. Aliviado, respondi que essa era sua maior virtude nesse pouco tempo que a conhecia. Minhas irmãs dançaram com ela, minhas sobrinhas mostraram todas as bonecas e meus cunhados a mediram maliciosamente de cima a baixo. Não precisei de Billie Holiday para cozinhar. A presença de Bianca me ocupava o tempo inteiro e meus ouvidos precisavam ficar atentos. Que atriz! Que presença de espírito! Comecei a acreditar em algumas estórias que ela contou naquela espelunca por conta dessa atuação na casa da minha mãe.

Missão cumprida. Engoliram Bianca junto com o bacalhau , o vinho português e o chocolate. O domingo de Páscoa passou rápido, pois às 18 horas a índia virava abóbora. Foi perfeito. Uma aventura arriscada que deixou minha mãe tranqüila e me fez conhecer uma mulher e tanto. Não a vi mais e nem soube o nome dela.


Obs: Esse texto também foi publicado no blog/projeto "Pândega".


domingo, 16 de março de 2008

Outra encomenda


Mais uma encomenda chegou. Outros três vinis, agora de rock de garagem misturados com blues. Mais de um mês para chegar, mas suportei a ansiedade sem sofrimento. Comprei da gravadora e distribuidora Bomp Records, especializada em punk e garageiras afins. São eles: “The Hardest walk” dos Soledad Brothers, “The big come up” dos Black Keys e “Why don´t you give it to me” do negão Nathaniel Mayer. Apesar da Bomp Records distribuir, os três álbuns foram gravados na Alive Records, que lança muitos álbuns de punk blues.

A banda The Black Keys eu conheci de uma maneira engraçada. Eu lia uma revista bem testosterona chamada “Vip”, e eu, cheio de preconceitos, folheava dentro do SESC Belenzinho, num domingo, por causa de alguma mulher da capa. Aí pensei: “o que interessa os leitores da VIP ?”. Depois de ver a gostosa posando, encontrei a indicação do disco “Thickfreakness” dos Black Keys na seção de Cd´s e gamei na capa. Eram dois dedos tirando uma pasta branca para o cabelo, brilhantina mesmo, numa embalagem bem retrô. Não lembro o teor do texto, mas saí dali pra comprar o álbum. Era 2003. Só de saber que tinha uma cover da minha banda de garagem 60´s predileta, os “Sonics”, já senti que ia gostar. Eles seguem a mesma linha de formação dos “White Stripes”, ou seja, um guitarrista e um baterista. Sem contrabaixo , mas a barulheira é ótima. Eles são de Ohio, mas participam da cena garageira de Detroit .

Daí pra conhecer os Soledad Brothers, também de Ohio, foi só um estalar de dedos, pra acompanhar o ritmo do blues. Eles aproveitam mais o boogie como ritmo e fica muito dançante.

Nathaniel Mayer é um cidadão de Detroit. Já fez muito esqueleto chacoalhar com suas composições soul e Rhythm and blues antes desse lançamento que comprei. Conheci o nome e o disco enquanto comprava os outros dois álbuns. Era uma indicação dos Black Keys, já que a banda de apoio desse álbum tinha gente dos Dirtbombs, The Sights e o prórpio Dan Auerbach (The Black keys). Não resisti e comprei também.

Comprar em vinil têm algumas vantagens. No caso dos Black Keys, existe uma cover que só está no vinil, do Iggy Pop & The Stooges, chamada "No fun". No caso dos Soledad Brothers e do Nathaniel Mayer, os vinis não são pretos, são de cor violeta.

Coloco um clipe dos Black Keys pra diversão. Outra encomenda foi feita. Espero que não demore, mas pedi o novo dos Dirtbombs e um antigo do Jon Spencer Blues Explosion. Quando chegar , aviso por aqui.

Com vocês, a dupla The Black Keys, que interpreta "set you free". Enjoy It!


domingo, 9 de março de 2008

Lambe fogo 2


Descobri o sabor da pimenta na porta das missas. Na igreja Matriz de São Bernardo do Campo, aos domingos, um vendedor de pipoca mantinha um recipiente plástico enorme e vermelho, meio encardido também. Aquele molho picante transformava a pipoca e a minha boca. Me fazia ir à missa de domingo sem arrependimento ou preguiça. Era a época da primeira comunhão. A novidade não era a paixão de Cristo, e sim pegar ônibus com a turma e se virar sem os pais pelo centro da cidade. Nunca me importei com religião, mas a preparação toda para começar a comungar parecia mais séria que de outros amigos. Lembro que numa ocasião, numa das últimas aulas, o padre usou pão e vinho mesmo para representar a hóstia. Ele era boa praça. Tanto que num domingo, quem ocupou o espaço do sermão foi o Lula, então presidente do sindicato dos metalúrgicos. Era 1978. Aquela igreja era palco de manifestações, passeatas e muita bomba de gás lacrimogêneo.

Voltando à vaca fria, a pimenta entrava no meu paladar somente nas ruas. Pastelarias, trailers de lanches e bancas de camelôs. Em casa, não lembro. Quando comecei a cozinhar, aí sim. As pimentas em grãos para temperar e a malagueta pra alegrar a língua. Em casa nunca consegui o sabor e efeito de ardência que os botecos alcançam. Minha preocupação em deixá-la com um sabor e não somente forte, deve fazer com que fique fraca.. Outro fator é a ansiedade de consumi-la e não deixá-la curtindo por um bom tempo com recipiente fechado. Cada um tem uma receita e segui muitas delas, mas nunca ficou tão ardida como estava acostumado a comer nas ruas. Óleo, azeite, vinagre, alho, pinga, misturados, separados, batidos no liquidificador, enfim, tentei de tudo. Mas o mais simples, nunca fiz: misturar com óleo de soja, um pouquinho de pinga e deixar fechada por um tempo, aliás, como essa da foto que tirei. Ganhei do companheiro da minha sogra. Eles moram em Caraguatatuba e colhem malagueta na horta. Foi paixão à primeira gota.

Considero o sabor da malagueta muito sofisticado. A gastronomia baiana que usa muita pimenta também é bem sofisticada. Usam gengibre, amendoim, azeite de dendê, peixes nobres, leite de coco e a malagueta pra alegrar, novamente. A malagueta abre meu apetite, deixa as papilas gustativas bem ouriçadas e espertas para o que vem depois. Os sabores ficam muito definidos.

É isso o que acontece quando vou ao “Sujinho” da consolação, no “Bar do Estadão” no centro, na “Mercearia São Pedro” e “Empanadas”, ambos na Vila Madalena e no “Peru´s” no Belém. As malaguetas ficam lá boiando num óleo que queima tudo de tão ardido. Um sabor delicioso e muito soluço, caso exagere. Sempre tive vontade de afanar as pimentas desses lugares.

As últimas descobertas em pimentas pra mim, de uns 10 anos pra cá, são as comidas mexicanas. Ai, ai, ai. Pratos deliciosos, misturas inusitadas e muita pimenta. Em Pinheiros, o “El Mariachi” foi o restaurante que me apresentou a essas delícias apimentadas. Melhor ainda, sempre com 3 Mariachis cantando e tocando. Quando um dos músicos pega o trumpete para fazer um solo , um dos garçons larga a bandeja e toca bongô enquanto ele sola

Ainda não experimentei uma pimenta que é servida inteira, empanada e recheada. Se chama Jalapeño. Quero provar o “Jalapeño Poppers” do clube Belfiore qualquer dia desses, acompanhado de uma Guinness e muito rock. Lá, a linha das comidas é “Tex-Mex” (Texas, México). E quando você pede pimenta, eles trazem o recipiente de Tabasco, que é um molho de pimenta bem gostoso. Um amigo experimentou essa Jalapeño e disse que viu a cobra fumar. É bem forte.

E pra não dizer que não falei de álcool, até um drink leva pimenta. Gosto tanto dele que até aprendi a fazer em casa. Leva vodca, limão, molho inglês, sal, suco de tomate e molho de pimenta. De preferência Tabasco. O drink se chama Bloody Mary. Delicioso.

O nome desse texto e o anterior, foi copiado de uma pimenta que é vendida num restaurante de beira de estrada em Paraibuna. Na Rodovia dos Tamoios, caminho para Caraguatatuba, esse restaurante é especializado em comida caipira feita em fogão a lenha. E vendem essa embalagem de pimenta chamada "Lambe fogo". Não comprei, porque esqueço. Quando almoço lá, esqueço de um monte de coisas, inclusive de levar a pimenta. A comida me deixa em outro estado.